Que cabeça! Que cabeça! Nunca me vi tão farto. Tudo andava untado. Se os piolhos tivessem ocupação, eu não tomava outra. E até mesmo para trazer a consciência desembaraçada. Ali não há que arranhar, é vender medida por medida. Compro uma canada. Vendo uma canada. E ainda às vezes se põem linhas de casa, pois todos sabem que nas medidas pequenas sempre há quebras. E então, que homem tão escrupuloso com que eu dei! Eu conto, para pintar e conhecerem a sua boa alma, um caso sucedido na sua loja.
Tinha um caixeirinho que era um ladronete (ladrão). E que fez para furtar ao povo? Na balança oposta à dos pesos, pos-lhe, pela banda de baixo, uma bolinha de cera no fundo e, como da outra banda ia o gênero, já se sabe que, quanto a bola pesava, tanto ele furtava em cada peso que vendia. Vai o tendeirinho da minha alma dar com o furto. Ora que lhe parecem que ele faria? Pois eu lhes digo: salta-me no caixeiro e fez-lhe confessar que tempo havia que ele fazia aquele furto. O mesmo confessa que havia cinco meses. Diz o patrão: — Pois não importa. Eu quero pagar o furto que tu fizeste ao público. Passa-me já essa bola de cera para a banda dos pesos e outro tanto tempo quero dar o de César a César. E, no mesmo instante, fez mudar a bola. Mas também mudou os pesos e continuou a pesar como dantes.
Numa cabeça destas é que é estar! Então que caridade de homem! Ensinava o público a ser econômico, tirava nos molhos de carqueja ramos para fazer mais e dizia: — Quanto mais grandes são, mais gastam. Os queijos, para serem mais frescos, punha-os em parte onde houvesse água para receberem aquela humidade; e ainda que entravam mais no peso eram menos salgados. Manteiga sempre a pesou em papel grosso e sujo. Tinha uma receita para disfarçar o vinagre que ninguém diria senão que era água. Medida de azeite era como alcatruz, sempre tinha buraco no fundo. Medida de pau, toda tinha dois fundos, o natural e outro pela banda de dentro. Cebolas, era um pasmo! Ninguém fazia molhos com mais elegância. Tinha a habilidade de transformar o sebo em manteiga. Também se aquele não está no céu, mal por nós. Tinha a pachorra, só para fazer bem, de andar procurando ovos que estivessem chocos. Comprava-os a trinta réis a dúzia e vendia cada um por um vintém, quando muito por vinte e cinco, um ovo e um pinto.
Ouviu dizer uma vez a um médico que a aguardente secava e mirrava a gente por ser um espírito muito forte. Olhe lá, não a tornasse ele a vender sem lhe botar primeiro uma terça parte de água! Está na neve: Sabem o que ele fazia ao arroz para lhe tirar a pedra e não entrar no peso? Lavava-o, esfregava-o e botava-lhe areia e desta forma unia o asseio ao benefício. Nos feijões, seguia aquele ditado: Uma verde com uma madura. Comprava, por exemplo, os novos a oito tostões, os velhos a cruzado, misturava uns com os outros e vendia-os pelo mesmo que lhe tinham custado, isto é, a oito tostões. Não queria ganhar nada com o próximo e dava a razão, dizendo: — É alimento que só comem pobres.
Também dava crédito a alguns oficiais mecânicos. Mas não lhes vendia os gêneros por mais que os vendia aos outros. Só apenas no rebate das férias é que levava sessenta por cento. Sim, senhor, é nesta cabeça que eu passei uma vida regalada. Chupava-lhe o sangue e ele nada sentia. Suponho que era por ser alheio. Não tinha tempo nem para se coçar. Mas que desgraça! Uma noite, pela volta das três horas, deu-lhe um estupor, não disse nem guarde Deus a vossa mercê. Eu apenas o senti frio, quis-me safar. Mas neste tempo chega um boticário vizinho que chamaram com muita pressa e pos-lhe o ouvido ao pé da boca para ver se o sentia respirar. Eu, sem perder tempo, me passei para a cabeça do dito, na qual ponho a minha Carapuça VI.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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