terça-feira, 30 de maio de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Apagão)

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ que aquilo acontecia com ele. Vinha pela rua, cabisbaixo, fumando seu cigarrinho. De repente, uma jovem dos cabelos compridos, pintados de vermelho, um sorriso encantador no rosto de princesa, lhe estancou os passos no exato momento em que parava numa banca para comprar um jornal:

— Garcia, há quanto tempo!

Garcia olhou para a pessoa que lhe chamava pelo nome e tentou se lembrar de onde a conhecia:

— Verdade. Faz bastante tempo mesmo!

— Por que não foi mais lá em casa?

— Falta de tempo.

Naquele momento, pela segunda vez, falhava a memória. Garcia não conseguia se recordar daquela moça bonita, parada, ali, na sua frente, os dentes muito brancos, um corpo perfeito cheio de curvas pecaminosas.

Coisa de uma semana, Garcia vinha passando por esse desconforto. As pessoas se encontravam com ele e o desditoso não conseguia atinar de onde as tinha visto anteriormente. Por mais que se esforçasse, dava um branco. Zerava tudo dentro da sua cachola. Pensou com seus botões:

— Pai Amado! Agora, com essa joia rara, a coisa se repete. Que pedaço de mau caminho, essa guria e eu não faço a mínima ideia de onde a vi em vezes anteriores...

A beldade, sem se dar conta do problema, seguiu adiante:

— Como vai dona Bárbara?

Dona Bárbara era a mãe dele:

— Bem, graças a Deus.

— E seu pai, o velho Juvenal?

— Firme, forte e rijo.

— E a menina Glorinha?

— Casou!

— Casou? Nossa, não diga! Acaso com Bartolomeu?

— Não, com o Zeca.

— Com o Zeca?

— Pois é. Para você ver como são as coisas.

— E o Bartolomeu?

— Escafedeu do pedaço.

— Nossa! Glorinha casou com o Zeca! Quem diria!...

Garcia seguia dissimulando a aflição que o invadia. Estava passado. Realmente, não recordava daquela figura tão fogosamente bela e exuberante.

Ficava chato mostrar a sua estupidez, assim, logo no inicio do encontro. Seria vexatório confessar a gafe. Seu velho pai, vivia dizendo que “não havia nada mais desgastante que um sujeito esquecer uma pessoa tão cativante, ainda mais se ela fosse dona de um rosto literalmente chamativo e sensual”. E aquele bem ali diante de seu nariz tirava qualquer um do sério. Puxou numa derradeira tentativa pela droga da mente. A Deusa de Vênus conhecia a sua família em peso. A mãe, o pai, a irmã, os namorados da irmã. E ele feito um panaca, abobalhado, se mordia tentando resgatar uma nesga de lembrança dentro da amnésia repentina (ou algo parecido) insistindo com veemência em lhe atingir os brios de maneira tão rudemente cruel:

— Valha-me Jesus Cristo!

Estava claro, ela não se enganara. Ele é que se passava por um perfeito idiota. Um babaca que não conseguia alforriar do fundo de seu âmago a figura estonteante daquela maravilha bem ali ao alcance das suas mãos:

— Pelo que estou vendo você não conseguiu deixar o vício.

— Que vício?

— O do cigarro.

— Bem que tentei.

— Lembro que por um bom tempo, você obteve êxito.

— É verdade.

— E por que voltou a fumar?

— Difícil explicar. Na verdade, nem me lembrava que alguma vez consegui deixar o tabagismo. Certamente fraqueza.

— Você sempre foi um homem forte. Demonstrou essa qualidade quando a Margarida...

Por tudo quanto existia de sagrado. A garota lembrava da Margarida. Até da Margarida, sua primeira namorada, a infeliz não se esquecera. Seu primeiro amor. Com a Margarida o Garcia noivou, quase casou. Largou da Margarida pela Bete:

— Por falar nela, tem visto?

— Visto quem? A Margarida ou a Bete, que veio depois dela?

— A Margarida.

— Nunca mais me foi dado esse prazer.

— Soube que se casou.

— Ah, é verdade. Me falaram.

— E você, continua só?

— Ainda.

— Desde a sua formatura?

— Sim. Desde a minha formatura...

Garcia queria sair às carreiras, pedir socorro. Gritar, espernear, chorar. Mas não podia. Ficava chato declarar aquela moça tão meiga e gentil que não lembrava da Margarida, ou via outra, da Bete, aliás, não lhe vinha à cuca, coisa alguma. Tampouco a sua interlocutora, ali, a seu lado, ele fazia ideia de quem se tratava. Seria uma tremenda falta de educação e das grandes.

Atarantado com seus problemas, deu uma última tragada no cigarro. Jogou a guimba no chão e pisou em cima, com a ponta do sapato, para amassar. Voltou a consultar a memória:

— Meu Pai Eterno, quem é essa fofura?  

Talvez, se perguntasse o nome tudo se esclarecesse:

— Escuta, eu não sei de quem se trata a sua...

Antes que terminasse o que pretendia, a estrangeira o interrompeu bruscamente:

—... Garcia, não me diga que continua só desde a sua formatura? Espere um pouco. Depois da Margarida pintou a Bete que lhe botou um par de chifres e depois, a Luzia. O que aconteceu com ela?

— Ela quem?

— A Luzia, ora bolas

— A Luzia morreu atropelada.

— E a Sandrinha do Miguel?

— Sandrinha foi para os Estados Unidos. Casou com um americano. Já é mãe de dois moleques. Quanto ao Miguel se ajuntou com uma sirigaita lá do bairro e ela está grávida de seis meses.

— Nossa!

— Vamos parar de falar de mim. Falemos de você.

— O que quer saber?

— O trivial. Casou?

— Está falando sério?

— Sim.

— Garcia, seu moleque. Isso lá é pergunta que me faça? Não acredito no que estou ouvindo... sinceramente! Depois de tudo que... vi... esquece... vá para o diabo que o carregue.

Sem se despedir, e visivelmente furiosa a inimitável virou as costas e deixou o Garcia de boca aberta, os olhos arregalados e um tremendo vazio rodando no embaralho de sua cabeça.  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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