segunda-feira, 8 de maio de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Buraco sem curva)

EXISTE UM VELHO ditado popular que mais que expressar uma vontade do ser humano, mostra a sua frieza em relação à dor alheia no tocante à presença inescrutável da morte. “Não vou a velório de ninguém para jamais alguém se dar ao luxo em vir ao meu”. Penso o contrário. Sempre que posso, dou uma paradinha básica em alguma capela espalhada pela cidade e faço isso, na maioria das vezes, sem conhecer o morto, ou alguém do seu estreito relacionamento. Qual a razão para agir assim? Simples! 

É nesse momento de inconfundível e profunda tristeza e infelicidade que as pessoas descem do pedestal em que se acham aprisionadas. Tiram a máscara. Mostram o verdadeiro rosto onde se esconde a pecha da imbecilidade em sua melhor forma de expressão. Então vemos o fundo bem nítido da sua real personalidade. É nessa emergência de agonia imensurável que elas se despem das suas armaduras e se tornam pequenas, humildes, abertas a todos os portos. É nesse instante também que a gente toma conhecimento da nossa fragilidade e da astenia de quem está em desespero consigo mesmo.

Ficamos indefesos, à mercê de um gesto de amparo, de uma palavra de conforto. Não sei se o amigo leitor alguma vez chegou a notar que nesses fúnebres encontros as pessoas se cumprimentam e se abraçam, sem ao menos saberem quem são os interlocutores.  Não me aproximo do extinto. Jamais! Limito a tão somente distribuir pêsames, receber e dar abraços, dar condolências, como se em cada gesto eu repartisse um pouco da minha própria dor adormecida. Da minha distância escudada pelo ar pesado do ambiente, e envolto no perfume das flores e pela claridade das luzes balouçantes dos castiçais, me quedo a observar o falecido em seu leito póstumo de derradeira e longa viagem.  

O coitado ali está, solitário, sério, o rosto sem a cor da vida plena, sem o sorriso que o acompanhava nos momentos de pura e sentida felicidade. Sem poder dizer nada, se detém pacientemente ao instante de ser conduzido à sua postrema (derradeira) morada. Haverá a repetição daquele insuportável e doloroso “guia prático para defuntos com passagens só de ida”; de mais choros incontidos; de gritos e berros renovados nas gargantas; desmaios; saudades; dores, lembranças... e, depois, a solidão imutável e perversa, que se incumbirá de chegar pesada, cair melancólica e indiferente tornando maior a comoção de cada um em seu âmago particular. 

A esse quadro meio que proditório (falso) e fementido (enganoso), se juntarão os familiares em orações, seguido da jogada do punhado de terra sobre o esquife e, finalmente, a descida do corpo inerte ao chão indiferente que consumirá as suas carnes numa fome de voragem impiedosa. E indago consigo mesmo: Será que o falecido conseguiu (antes de se ver frente a frente com o barqueiro) dar aquele abraço apertado no filho, no amigo, no desafeto, no vizinho chato? Sobrou tempo para brincar com o cachorro, ou para levar o temporão na escola? Restou um segundo, para assistir à partida de futebol onde ele participaria jogando contra um time de alunos visitantes?  Será que conseguiu realizar todos os sonhos? 

Lembrou alguma vez de dizer “Meu pai, eu te amo, mamãe, como sinto falta da sua comidinha caseira, dos nossos encontros nos finais de semana!”. Conseguiu, acaso, sentar com o filho adolescente com suas ideias tresloucadas à mesa e jantar, ou a tomar com a avó paralítica um rápido dejejum? Teve, acaso, a ventura de pegar nos braços o recém-nascido, a raspa de tacho e cochichar em seu ouvido “filho, papai te ama!”. Houve tempo para um tempo mínimo de se reconciliar da briga com a esposa? Esqueceu a raiva que passou ao ser fechado no trânsito quando seguia em direção ao trabalho? Perdoou o “amigo entre aspas”, que pegou um dinheiro emprestado prometendo pagar em três dias, mas, em razão disso, desapareceu do convívio dos encontros com a galera na birosca de dona Candinha? 

Costumo comparar as cerimônias dos velórios aos casamentos. Procure observar, você leitor, que me acompanha, que nesses eventos auspiciosos, todos se concentram em olhar à noiva. Ninguém se preocupa com o cidadão que está casando. A noiva é o xis da questão, o ponto nevrálgico da pompa alvoroçada. A multidão só tem olhos e admirações para ela. A figura do “prometido” permanece esquecida, jogada, abandonada, como se não fizesse parte do elo que acabou de se formar. Nesse momento de luzes e holofotes, a mulher, (a noiva), pensa somente na realização do seu ego interior. 

O sonho de subir ao altar, ser notada, desejada, querida, endeusada. O nubente (o homem), ao contrário, vê diante de si a figura negra da razão em caminho divergente. É a partir daí, que ele se dará conta da fria em que se meteu. “Meu Deus, e agora? Mulher, filhos, gastos, brigas, família para sustentar, desavenças. Ah! Que saudade da minha vidinha de solteiro! Bons tempos, aqueles...”. O extinto, certamente, é o noivo num patamar às avessas enfrentado a sua razão desconhecida. “Meu Deus e agora? Não terei mais tempo para ligar para meus amigos, tomar uma geladinha, comer uma porção de batatas fritas, ver meus filhos, noras, genros... 

Meu patrão deverá sentir muito a minha falta? Eu era o braço direito dele. O que faço agora? Será que, ao menos meus familiares se lembrarão de me endereçarem preces além-túmulo?”. A noiva, soberba, intocável em sua altanaria continuará sendo a realização, agora sediada na figura da viúva, que recebe os amigos. Qual o quê! Em trilho paralelo, será constrangida, se verá importunada, rodeada e, em breve, terá alguém de olho gordo no seu corpinho escultural. Por distante, ou por apartado, meu caro amigo leitor, procure, vez ou outra, dar uma passadinha onde alguém cultua a memória de um distinto que está indo para o andar de cima. Perto de você, sempre existirá um esquife simplório ou luxuoso, à hora amarga de descer o féretro à sepultura. 

Talvez, num desses, você seja a única pessoa a cumprimentar os consanguíneos. Já estive em funerais onde somente as esposas e os filhos se faziam presentes. Em outros mais, estranhos passavam de olhos cumpridos tentando digerir o incompreensível. Aproveite esse momento de reflexão e faça uma introspecção. Se ponha no lugar do “de cujus”.  Coloque os pensamentos em ordem. O que poderia fazer exatamente nesse momento que por algum momento ficou relegado à segundo plano? A quem o prezado deixou de dar um “olá”, de retribuir um sorriso, ou de dizer, “que bom que você está aqui ao meu lado! 

Tal como o morto, você sentirá na pele, a razão viva e pulsante na sua melhor forma de integridade e retidão, e verá que a sua realização poderá estar bem aí, ou bem ali, como sempre esteve, debaixo do seu nariz, camuflado, quem sabe, na figura esperta de um Ricardão encapotado, que nem por um segundo (ainda que para disfarçar), se deu ao luxo de desviar os olhos dos fundilhos fartos da sua companheira e não vê, em razão disso, a hora de ocupar o seu lugar, na cama onde você, na antiga figura de Rei, mandava em tudo, como se fosse o dono único e soberano de um reinado que só se fazia deslumbrante à sua sanha de “Mané-otário”. 

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Texto enviado pelo autor.

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