É ofício de lavadeira mais do que muita gente lhe parece. Precisa-se de uma grande memória, saber mentir e saber furtar. Não cuidem vossas mercês que é aí qualquer oficiozinho de droga! Não digo que seja um ofício que para o servir dê água pela barba; mas, pelos joelhos, quase sempre. Passei nesta cabeça uma vida de Capote. Só duas ou três vezes por ano tirava a coifa da cabeça e assim mesmo rapei frios de bom lote com a história das madrugadas. A tal era casada com um saloio que de quando em quando lhe dava bons socos, no meio dos quais eu me achava muitas vezes, porque o seu forte era atirar-lhe à cabeça.
A tal lavadeira era muito governada. Havia vinte anos que era casada e tinha casa e nem uma só única vez a tinham visto no Fanqueiro a comprar fazenda branca. Apesar disso andava sempre muito lavada e mais o seu homem. O que é o aninho! Ela lavava muito bem e tinha muita freguesia. E então o modo com que ela tinha repartido a roupa dos fregueses! Sempre lhe ficava uma ou duas cargas dela lavada, em casa, para se ir servindo. E assim dava volta por todos e todos se serviam. Mas ela não era de tudo, era de algumas coisas como lençóis, camisas, anáguas, ceroulas, meias, lenços de assoar, de pescoço, alguma saia, alguma coberta, toalhas, panos, guardanapos, & cia., e assim começava o ano e fechava o ano.
Mas era muito desgraçada. Nunca lhe furtaram camisa velha, sempre era nova. O que a ela lhe sucedia era se a obrigavam a pagar (o que poucas vezes acontecia) sempre a pagava por velha. Era tão governada que, tendo o marido alporcas (intumescência das glândulas do pescoço) e sendo-lhe preciso fios, sabem o que ela fazia? Cortava uma tira ao comprimento das toalhas de mãos, tornava-as a embainhar e daqui tirava fios e ataduras. Também, se não fora a sua agência, era uma pobre de Cristo. O marido ao Domingo sempre trazia camisa de punhos, véstia (casaco curto) e meias lavadas, tudo fino. Graças à mulher que cuidava no seu asseio. Ela amassava em casa e já tinha adquirido os seus três moios de sacos sem fazer maior peso aos seus fregueses porque não tinha senão furtado um a cada um. Parece que lhe crescia a roupa nas mãos. Trazia a roupa aos fregueses, e ficava-lhe roupa. Verdadeiramente, era como diz o ditado: Roupa de franceses. Tinha lenços de assoar que, ainda que ela e o marido viessem a ser os mais ranhosos da sua Freguesia, nunca se haviam de assoar à mão.
Também em algum dia de função alugava o seu camisote a um vizinho que não tinha lavadeira em casa. Numa palavra, era roupa que lhe caía em casa que também lhe não caísse no corpo. E outra coisa que ela tinha! Todos os dias vestia camisa lavada. Função que ela teve boa foi uma cheia que houve na sua terra. Veio abaixo aos fregueses como uma Madalena dizendo que se lhe tinha ido embora muita roupa, que o resto lá estava junta, que a fossem seus donos buscar. Que uma houve freguesa que chorava com ela. Todos lhe perdoaram o perdido. Ganhou na cheia em que muitos perderam mais de cem mil réis. E louvava a Deus por a ter ajudado para dar o dote a uma filha que estava para casar. E dizia, muito satisfeita: — Quando as coisas são para bom fim, tudo vai direito.
Tinha muita felicidade no seu oficio. No fiado, que lhe davam para curar, tinha ela uma advertência que poucos têm: sacava de cada meada um novelinho para a poder curar melhor. E no fim da cura, tinha de dízima as suas duas arrobas de fiado que inculcava a uma das freguesas mais abastadas dizendo que outra, cheia de precisão, a vendia. E desta forma lucrava muito, não furtando quase nada. E tinha a cautela, antes de trazer a teia, de prevenir as freguesas, dizendo-lhes: — Não sei que linhos são estes de agora que quebram tanto.
Nunca enjeitou roupa. Quando era muita e não a podia lavar, deixava-a em casa de um Pasteleiro onde era o seu rendez-vous. E o dono ficava muito contente por lhe ter levado a lavadeira a roupa, quando ela ficava de empate até à volta da dita, que assim mesmo suja muitas vezes servia aonde a deixavam. Tinha tão boa consciência que, perdendo uma vez uma camisa já velha e rota, teimou em pagá-la à dona que, por lhe fazer equidade lhe disse que bastavam seis vinténs! Pois não quis a minha lavadeira. Teimou e deu um cruzado-novo, dizendo: — Ainda que era velha, servia corno nova e então busquemos o meio termo do valor de uma camisa.
Todos lhe louvaram a ação e a verdade. Mas daí a três meses perdeu duas de holanda (tecido de linho) que valiam bem uma moeda cada uma. E deu a mesma razão e o mesmo cruzado-novo, que assim como tinha pago a outra por mais, esta devia ser pelo mesmo pois que era casualidade o ser melhor. E que já agora ficava aquele preço estabelecido a respeito do artigo camisas. Então isto não é igualdade? A respeito de meias, não só as lavava mas também as palmilhava levando por tudo cinco réis. E mais chegou muitas vezes a palmilhar com meias alheias, da terra para Lisboa e de Lisboa para a terra.
Sim, senhores, isto não é graça, é a pura verdade. Por casa nunca usava de sapatos, sempre andava só com meias e dizia ela que lhe saía muito mais barato. Todas as portas do interior da casa tinham lençóis por cortinas. Nunca usou de rodilhas na chaminé, ou guardanapos, ou toalhas. No seu tanto, tratava-se com muita decência. Mas eu, cansado de andar entaipado debaixo de uma coifa, buscava todos os meios de me pôr ao fresco. Até que a sorte me deparou. Foi que um dia que veio à cidade, indo a uma loja de bebidas tomar um copo de café, tirou a carapuça para a qual eu tinha a cautela de passar à espera de qualquer ocasião. Deixei-me ficar em cima da banca donde passei para o tabuleiro dos bolos e, daí, para o armário em que pouco me demorei. Porque metendo o dono da loja, à noite, o lenço do pescoço no dito, passei a ele e no outro dia ao pescoço do tal tratante e no mesmo instante à cabeça, à qual fiz a Carapuça X.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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