Nenhum professor de História poria no filho o nome de Teglatfalasar, Vercingétorix ou Nabucodonosor. Na certa compraria briga com a mulher e pretexto para o divórcio. Contudo, de vez em quando, nos assustam nomes que mais parecem palavrões. Onde os pais os descobriram? E por que marcaram assim os filhos para o resto da vida?
Em Jales (SP), no meu segundo ano escolar, em 1949, transferido não sei de onde, entrou em minha sala um colega chamado Heliobas (com “o” fechado). Bizarro, sem dúvida, o nome; mais bizarro o dono. Não se via, entretanto, no grupo escolar inteiro, um estudante que lhe negasse a mais rasgada simpatia. Era uma figura rústica, quase selvagem. Ao mesmo tempo, de uma doçura ingênua e um coração tão puro que se tornava impossível não amá-lo. Não revelava preocupação alguma de ocultar sua procedência de uma família com recursos mais limitados até do que as nossas. E olhe que nós já éramos pobres o suficiente para atender à categoria socioeconômica de classe D. Até inferior, se houvesse. Para ele, no entanto, pobreza não constituía problema. Nela nascera e com ela se acertava muito bem, desde o berço. Ela era como um componente natural de sua vida.
Taludo, de compleição física superior à nossa, era também mais velho. Ainda assim, acompanhar a classe custava-lhe indisfarçável esforço. Não tinha sido boa sua escola anterior, se é que acaso tivesse frequentado uma. Possivelmente trabalhasse duro na roça. Na certa, residia longe do amontoado de casas a que dávamos o pomposo nome de cidade. Com paciência de pai, o professor Oscar Aidar cuidava de lhe respeitar a lentidão do ritmo. De certa feita, observando que toda a classe tinha copiado as dez questões do quadro, mandou um aluno apagá-lo. Lá do fundo, irrompeu a voz grossa de Heliobas: –“Pera um pouco, professor. Ainda tô na novena”. Ninguém riu. Não fosse ele, a reação teria sido outra. Mas dele ninguém caçoava. Era puro demais para sofrer atos de “bullying”, do qual nem ainda tínhamos ouvido falar.
Numa das caminhadas dominicais – atrás de frutas silvestres e banho nas águas cristalinas do riacho que corria pelo matagal ao fundo da chácara do tio Vito –, meu irmão Eraldo, alguns vizinhos e eu nos aventuramos além das vezes anteriores. De súbito, demos com um rancho. Naquela área nunca tínhamos pisado. Nem visto pobreza igual. Heliobas aceitou bem nossa presença anunciada pelos cachorros. Não demonstrou constrangimento pela choupana em que sua família morava. No meio do mato. Literalmente.
Passado pouco tempo, nos mudamos. Nunca depois consegui dele sequer notícia. Estará ainda vivo? Em que parte deste Brasilzão rico, desigual e injusto? Melhorou a dura vida que suportava sem queixa? Desfruta de saúde e de uma boa aposentadoria? Goza de paz interior e vive feliz, rodeado de bastantes amigos? Criou uma linda família, com filhos e netos que lhe confortam a velhice? Seria o mínimo para compensar-lhe a infância (e juventude?) tão sofrida(s).
Ah, caro amigo Heliobas, sabe Deus quantos, como você, arrastam a nosso lado a sua cruz. Em silêncio. Nós desviamos o rosto. Como se não nos dissessem respeito. Nem revestissem a mesma dignidade que para nós reivindicamos. Deus queira que um dia, tremendo de pavor, não tenhamos que ouvir: “Tive fome e não me destes de comer, sede e não me destes de beber…” (Mt 25,42).
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* Biografia do autor:
Filho de Antônio Robles (1914-1982) e de Luzia Gonsales Robles (1916-2010), monsenhor Orivaldo nasceu em Polôni (SP) em 6 de maio de 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Com a mudança da família para o Paraná (1957), veio concluir o antigo segundo grau no Seminário São José, em Curitiba. Cursou Filosofia no Seminário Rainha dos Apóstolos, em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP), com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma.
Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 22 de janeiro de 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial.
Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública.
Por ocasião do cinquentenário da Diocese de Maringá, em 2007, publicou o livro “A Igreja que Brotou da Mata – Os 50 anos da Diocese de Maringá”, com 352 páginas, sobre a presença da Igreja Católica na região de Maringá.
Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá, também de sua autoria.
Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.
Faleceu de enfisema pulmonar. Há vários anos o presbítero estava com a saúde debilitada, realizando tratamento médico por problemas pulmonares.
Fontes:
Crônica
Biografia
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