segunda-feira, 29 de maio de 2023

Coelho Neto (A flauta e o sabiá)

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa de charão (
verniz negro ou vermelho), jazia uma flauta de prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, suspensa do teto, morava um sabiá.

Estando a sala em silêncio e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma volata (
sequência modulada de tons rapidamente executados).

Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar (
rir com escárnio) no estojo, como a zombar do modulo cantor silvestre.

— De que te ris? – indaga o pássaro.

E a flauta, em resposta:

— Ora esta ! Pois tens coragem de lançar tais guinchos diante de mim ?

— E tu quem és? Ainda que mal pergunte.

— Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor, Marsyas*, lutou com Apolo e venceu-o, por isso o deus, despeitado, imolou-o. Lê os clássicos.

— Muito prazer em conhecer. Eu sou um mísero sabiá da mata. Pobre de mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me: que fazes tu ?

— Eu canto.

— O oficio rende pouco. Eu que o diga, que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, me não houvessem escravizado — se, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta ! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.

— Que eu cante...?!

— Pois não te parece justo o meu pedido?

— Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. Ao ritmo dos meus delicados trilos bailam as damas, guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao luar. O meu canto é a harmoniosa Inspiração dos gênios da rapsódia sentimental do povo.

— Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do canto.

— Isso agora não é possível.

— Não é possível! Por que?

— Não está cá o artista.

— Que artista?

— O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso lazer.

— Ah! É assim...?

— Pois como há de ser?

— Então, minha amiga — modéstia à parte — vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia.

Assim, da tua vangloria há muitos que se ufanam. Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não  se movem se os não amparam, não cantam se lhes não dão sopro, não sobem se os não empurram.

O sabiá voa e canta — vai à altura, porque tem asas; gorjeia, porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio os que mais alegam triunfos.

Flautas, flautas . . . Cantas nos paços e nas catedrais. Pois vem daí a um dueto comigo.

E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se o sabiá cantar e a flauta de prata no estojo de veludo... moita (fica calada)! Faltava-lhe o sopro.
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* Marsyas = Na mitologia grega, Marsyas é um sátiro frígio, que passa a se considerar um músico tão perfeito que desafia Apolo para uma competição, sendo que o vencedor teria o direito de punir o perdedor. Apolo vence, Marsyas é amarrado a uma árvore e esfolado vivo. Do seu sangue, nasce o rio Marsyas, na Frígia. Algumas vezes, Marsyas é substituído por Pan, no episódio da competição com Apolo. O mito simboliza a superioridade da cultura grega (representada pela lira de Apolo) em relação à cultura da Ásia Menor (representada pela flauta de Marsyas). (wikipedia)

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

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