Parece, à primeira vista, que eu passaria mal na cabeça de um boticário porque, se houvesse quem receitasse piolhos para alguma icterícia, não ficaria piolho vivo nas cabeças de casa. Mas onde os outros julgam o mal, aí é que eu achei o remédio. Boticário jamais dá o que se lhe pede. Por isso mesmo sempre vendem gato por lebre e nunca lhes falta nada na botica. Suponhamos nós que o Médico receitava piolhos. Que fazia ele? Ia ao leito, apanhava percevejos e analisava, dizendo: —Tanto é bicho o piolho como o percevejo. Com que se sustenta o piolho? Com sangue. Que faz o piolho? Morde. E o percevejo, que faz? Também morde. E demais, se o piolho é balsâmico, o percevejo não só o é mas também odorífero. O piolho morre, o percevejo remoça. O piolho é triste, o percevejo é alegre. A cor deste é muito mais bonita que a daquele. E concluía: — O percevejo anda por leitos recamados de ouro e damasco e quando chega lá um piolho? Nunca.
No tempo dos porcos, era o meu São Martinho, porque, como o boticário fazia banha, andava sempre limpando as mãos à cabeça. Mas esta lambição ia-me dando que entender, porque uma vez que tinha lidado com os pós de Joanes, limpou também as mãos. Eu fui muito abelhudo, parecendo-me grangeia (drágea). Por um nada que os não como. O que valeu foi ter tido uma indigestão na véspera e entrar no receio de comer coisa doce, porque eu, a este tempo, já me sabia curar a mim próprio pela prática de todos os dias estar ouvindo casos e decisões sobre a Medicina, principalmente a um que era a vera efígie do Doutor Sangrado.
Ele estava justo com o boticário. Repartiam os ganhos, à exceção do defunto. E o tal amigo era tão hábil na tal nigromancia de curar que teve a habilidade de receitar trinta e três receitas para um que já estava morto havia trinta e três horas, dizendo à gente da casa que era um acidente interior mas que ainda podia tornar a si e que os remédios eram para o fim de que o acidente saísse do interior para fora, o que nunca saiu. Foi com ele à cova.
Tinha também o tal boticário uma receita para olhos que era coisa nunca vista e a um seu vizinho que teve esta moléstia curou-o em três dias. Quero dizer a receita por ser coisa útil. Meteu-o numa casa às escuras e depois sacou-lhe todos os trastes da casa e pintou-lhe vários bonecos com carvão pelas paredes. Disse ao homem que podia sair, que estava bom. O doente, que não viu traste nenhum em casa, clamou que estava pior porque não via nada. Mas o boticário teimou que era mentira e perguntava-lhe: — Vossemecê não vê estas pinturas pelas paredes? — Vejo sim senhor, respondia o pobre homem. Reperguntava-lhe: — E vossemecê, antes de eu o curar, via-as? — Não senhor.
—Então para que se queixa, se vossemecê está vendo tão bem? Até vê o que não via antes da cura.
Na verdade um homem como este nunca havia de morrer. Tinha muitas receitas particulares e foi tão bruto que morreu sem deixar nenhuma aos parentes. Alguma, que se sabe, pilhou-se a dente. Também tinha uma para a espinhela caída, que era um pasmo. Fazia uma massinha e, em lugar de formar pílulas, fazia uma espinhela, secava-a, moía-a e, dissolvida em sal amoníaco, fazia-a beber ao doente, deitado da banda da espinhela. Ao fim de três horas tornavam os pós à sua primeira forma e eis o doente com uma espinhela nova. Compôs um Tratado para tirar dentes, em cinco livros de fólio, que ensinava o método de tirar as raízes sãs deixando os dentes podres de forma que, no seu bairro, ninguém tinha raízes. Um sujeito, para pôr umas de Quaresma no seu quintal, foi-lhe pedir licença. Também tinha ópio para todo o mundo. Quem queria dormir ia lá. Houve ali um sujeito que se queixava que havia quarenta dias que não pregava olho e ele, sem prego nem martelo, apresentou-lhe tanta quantidade de ópio que ainda hoje o não abriu. Todos os anos tinha um presente do coveiro da Freguesia pelo bem que lhe fazia. Nunca comprou pevide (semente) de melão e de melancia. Comprava as das abóboras que eram quase de graça e dizia: — Para que é amendoada? Para refrescar. Pois a abóbora é muito mais fresca.
Sabem com que ele quinava qualquer remédio? Com macela e nunca isso matou ninguém. Tinha um conhecimento de ervas que não lhe faltava senão comê-las. Uma vez que um médico receitou sal inglês para uma purga (laxante), exclamou ele: — Ó tempos! Ó costumes! Não se faz caso senão dos gêneros estrangeiros. Pois não há de ser assim. Fez a purga de sal português e o pobre doente esteve a beber água todo o dia. Sobreveio-lhe uma febre à noite e no outro dia foi para a Eternidade. Mas à portuguesa. Na verdade, tinha coisas muito galantes. Um remédio que ele tinha para defluxos ajudava-os a cair no peito e depois, então, é que os levantava, se podia. Também tinha um remédio para pólipos que, dentro de meio minuto, secava pela raiz pólipo e nariz. O que lhe valia era um amigo Poeta que tinha, que lhe os fazia depois de cera, para os doentes não ficarem com defeito.
Um dia, trazendo-lhe o tal duas dúzias deles, entrou o boticário a teimar que um não prestava e o Poeta a dizer que era o melhor. E pondo-lhe na cara, disse: — Para um homem assim da sua idade, com barrete na cabeça, está-lhe pintado. Que faz o boticário? Põe o nariz no Poeta, saca o barrete e põe-lhe também. Eu, que tinha estado a ouvir a conversação e morria, havia muito, por estar numa destas cabeças, passei muito depressa para o barrete e com o mesmo para a cabeça deste Virgílio, que é o assunto da Carapuça VII.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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