Quem tal adivinhara, que nunca a tal cabeça fora! Ele não tinha nem para si, quanto mais para os outros. Se me demoro ali, dou cabo da pele ou fico doido ou tísico. O amaldiçoado nem cama tinha. A única coisa que tinha à farta eram quinze ou dezesseis moças que namorava. Um bom Letrado não tinha mais que fazer, que o bom do homem a responder a escritos. E então tudo grátis. Só uma vez lhe vi ganhar um tostão por uma notícia de touros que fez em prosa. Uma vez fez-me tomar um banho por um consoante que lhe faltou. Esquentou-se tanto que mergulhou três vezes a cabeça na água.
Noutra ocasião começou uma carta de amores por estas palavras: Para alcançar a vossa paz preciso envenenar o meu coração. E ficou tão satisfeito que quatro ou cinco noites não dormiu e não lhe escapou amigo a quem não lesse este bocado. Era uma miséria! E era felicíssimo nos primeiros versos, mas já encalhava nos segundos. O seu forte era pé quebrado, de forma que coisa inteira, diante dele, tinha muito perigo. Tudo fazia de improviso, até o comer. Deram-lhe uma vez um mote... deixe ver se me lembra... ah, sim, era
A quem quis, quis.
Glosou-o otimamente. Eu não me lembro senão o fecho final:
A quem não quero, não quero,
A quem quis, quis.
Trabalhava sobre um Poema épico que era a vida do primeiro gato dos Tártaros e já tinha três cantos. Ultimamente tinha comprado um galo para lhe cantar os outros. Tinha também composto a musa universal e andava procurando assinantes, mas ninguém assinava. Outro livrinho, que ele compôs, intitulado Versos em prosa, era um chefe-de-obra, merecia ser dado à luz. Compôs uma Tragédia em que a primeira morte que aparecia em cena era o Empresário. Depois iam morrendo, pela sua ordem, os Atores e Atrizes todas de forma que um Comparsa, que atiçava as luzes, é que vinha dar parte de que se tinha acabado a Tragédia. Num outeiro que ele teve, aí é que foram canas! Nenhuma cabra salta nem chega aonde ele chegou! Um mote que lhe deram:
Cupido fechou os olhos
Vendou-se por duas formas.
Fez maravilhas, abismou tudo, tudo estava com a boca aberta. Um surdo ficou rouco de dar palmadas. Fechou-se o outeiro com este verso:
Cupido trincou Marília,
Nunca a chaga se curou.
Ai, senhores, fez versos que ninguém lhes meteu o dente. Meteu aqui o roubo de Helena, quando fugiu para Páris e as três maçãs de estanho provando que não podiam ser de ouro pela sua descoberta ser muito posterior. E não houve outro remédio senão tudo ir-se embora e ele ficou no campo, a berrar. Passei fomes, mas passei bocadinhos bons. A uma Senhora que ele estimava mais que o seu dinheiro [1], e que lhe escreveu uma carta que começava: E me não quis fazer o que eu lhe pedi, pegou na pena, bateu na testa, pôs os olhos no teto e respondeu de repente: E lhe fiz o que a Senhora me pediu. Ora peguem-lhe lá com um trapo quente. Façam-no melhor! Pobre era ele, mas juízo! Ali não havia que arranhar.
E uns banhos que ele compôs para uns noivos seus conhecidos! Vossas mercês cuidam que começava por quer casar? Não senhores: Gil Grego e Maria dos Ais [2] pretendem unir-se com o atilho do santo Matrimônio, para o que querem casar! Fazia tudo assim. Não se ligava a exemplos nem a costumes.
Nunca comeu a horas competentes. Comia quando tinha que comer. E era muito parco, comia poucas vezes. Nunca comprou calçado feito, mas sempre por fazer. Aos sapatos nunca chamou sapatos. Mudou-lhes o nome de patos em gansos, chamava-lhes sagansos. Igualmente ao casacão tirou-lhe o cão e pôs-lhe cadela. Tinha muita esquisitice boa. Tinha um cão que é quem lhe fazia a cama e esfregava a casa, apesar do mau cheiro que lhe deixava. Tinha um criado de azulejo, na escada, que se conservou muito tempo sem uma mão. Todo o seu engomado era de imprensa.
Fez um romance a um cágado e uma Elegia à morte de um caranguejo que assim como o caranguejo na vida andava para trás, na morte ninguém lhe passou adiante.
De coisas pequenas é que ele fazia as grandes. Teve uma borbulhinha atrás de uma orelha, como a cabeça de um alfinete. Pois tanto mexeu e coçou que a chegou ao tamanho de um ovo.
Noutra ocasião pegou num pobre homem, que não era nada, pôs-o acima das nuvens, fez-lhe um retrato, chamou-lhe quantos nomes quis. Enfim, desfigurou-o, que ninguém o conhecia por tal, senão ele. E isto só porque se capacitou que tinha cara de homem de bem. Vejam lá, que tem a cara com o coração! Eu conheci um Piolho com uma cara de diabo e as obras eram de um Alexandre. Vamos ao caso: este pobre homem morreu de um enchimento de estômago, por um jantar que lhe deu um avarento. E contarei o caso, lembrando primeiro, porque faz muito a esta história, dizer que o tal Poeta tinha uns magníficos cabelos e que o avarento usava de cabeleira. Chamava-se o avaro Tadeu, era casado, tinha filhos e mulher, que ainda viviam, apesar das mil fomes que passavam no ano. E vossas mercês contarão quantas eram por dia, que eu não sei quebrados, portanto não me meto com isso.
Entrou este homem, a peditórios (rogos) da filha e da mulher, querer fazer uma função em casa e isso em respeito a ter-lhe morrido uma avó que lhe tinha deixado oito mil réis de renda. Enfim, o avaro, depois de muitas dúvidas, muitas demoras, muitos itens, resolveu-se a fazê-la mas com a obrigação de que não havia de gastar mais de quatro mil réis. Aceitou-se o partido, dispôs-se o brinco que havia de constar de seu chá e depois ceia. O que valeu muito ao Poeta ser o chá primeiro, senão morria mais depressa. A ceia constou de abóbora-menina com raiolos e arenques de fumo com farinha-de-pau. O Poeta foi convidado para encher o melhor da função pois já se sabe que função sem poeta é o mesmo que batizado sem padrinho. E ele fez, nessa noite, versos lindos e até parece que adivinhava a morte, pois um verso que lhe deram, fechou-o:
Hás de me encontrar no campo
Onde os mortos vão viver.
Fez também um soneto todo em quartetos, botando os tercetos para trás das costas, que teve muita novidade. Pintou um tanque botando água que muitos chegaram a ir beber por lhes parecer que o estavam vendo correr. A uma Senhora que estava na função e metia um olho pelo outro, numa décima que lhe fez lhe pôs direitos como um fuso, e até lhes fez bonitos. E mais estavam ali pessoas que diziam que não podia ser, como se a um Poeta fosse impossível pegar no Colosso de Rodes e metê-lo pelos becos de Alfama [3], se ele quisesse. Enfim, chegou a hora minguada da ceia. O Poeta, que, sempre em dia de banquete, tinha véspera de jejum esquentado dos versos, e da fome, meteu-se na farinha. E ainda que a ceia era muito concisa, ele também era muito verboso e não deu tempo aos outros. Meia hora não era passada, entra numa aflição de estômago. Fizeram-lhe uma esfregação com melaço quente, deram-lhe a beber umas panelinhas de queijo e dentro de três horas se pôs no estado de não passar mais fomes, nem fazer mais versos. Mas nesta última não fez falta que, graças a Deus, ainda cá nos ficaram muitos que os fazem pelo mesmo gosto.
O Avarento, apenas o vê morto, pega numa tesoura, salta-lhe no cabelo e corta-lhe, em cujo eu também saí pois que, no defunto, nada tinha a fazer. Se ele me não podia sustentar vivo, que faria morto? Deixei-me ir a buscar nova sorte, ainda que com bastante medo não me encaixasse em alguma gaveta onde tivesse o dinheiro e em que não me desse nem o ar, o que assim sucedeu. Mas não a mim, porque ele quis ter o gosto, antes de o guardar, de ver se lhe ficava bem ao semblante para mandar fazer uma cabeleira. Chegou a um espelho, pôs o cabelo na cabeça, de cuja aberta me aproveitei para ficar (ainda que não muito contente) na cabeça deste Avaro. Pois que podia eu esperar de um infeliz que se deixava finar por não gastar o seu dinheiro? A vida deste desgraçado se verá na Carapuça VIII.
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Notas
1 - Dinheiro = Nunca o tinha. [N. do A.]
2 - Gil Grego e Maria dos Ais = Nomes dos contraentes [N. do A.]
3 - Alfama = Ponho aqui becos de Alfama para melhor inteligência dos meus Leitores, porquanto no original falava-se num beco que havia na Transilvânia, chamado Beco. [N. do A.]
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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