segunda-feira, 1 de maio de 2023

Rita Mourão (Descompasso)

Outono. Gosto dessas noites cheias de um calor definido, misturado com o odor suave das folhas secas. As árvores estão se despindo das cores embaçadas para darem lugar à renovação.

Eu também estou me despindo da antiga roupagem verde musgo sem que haja promessa de renascimento. Minhas vestes de hoje são de um lilás conformado que procura se acomodar às mutações. Às vezes tenho algumas recaídas, no entanto, o tempo implacável se encarrega de reajustar a minha postura. Eu e o hoje nem sempre estamos afinados. Tudo se passou muito rápido. Rápido demais para quem chegou aos sessenta anos sem entender as metamorfoses da idade. Tenho pensado muito sobre isso e sinto uma dor aguda que atravessa minhas entranhas e se instala nas janelas dos meus olhos. Por isso meu olhar é triste, uma busca constante do ontem. Guardo lembranças e, com elas, um vestido vermelho que vestiu meus 18 anos para uma foto. Sempre gostei de vermelho, mas este vestido é especial. Fala-me de um tempo em que as pessoas olhavam-me com interesse e até certa inveja. Tempo de amor, sonhos, semeaduras. Guardo-o com cuidado, gosto de acariciá-lo. Ele é bonito e exala um perfume cansado. Cheiro de outro corpo, esguio e estreitinho. Agora as roupas não me caem bem. Um pouco mais gorda, tudo fica meio esquisito em contato com a minha nova imagem. Mesmo assim, tento valorizar o que sou, num esforço supremo para resgatar o que fui diante dos compromissos que me cercam.

Hoje vamos a um jantar. Eu e o meu marido. Abro o guarda-roupa e procuro algo que possa me fazer mais jovem. Opto por um vestido justo, tentando forçar uma silhueta esbelta. Olho-me no espelho e me acho meio ridícula. Meu marido também não aprova. Com delicadeza, sugere-me um vestido mais solto. Ainda assim insisto. Coloco um colar de pérolas, calço uma sandália de saltos bem altos, prendo o cabelo em forma de coque e dou um colorido no rosto. Quero imitar a outra, a da foto. Enfrento o espelho. Tudo inútil. O vestido não é vermelho, o corpo e o rosto já não têm 18 anos. A pele aveludada há muito se manchou e se agregou ao peso dos anos.

Na sala meu marido espera. Elegante, paciente, generoso. Troco de vestido. Não sinto o efeito desejado. Não são os vestidos, penso. São as sobras que se avultam em meu corpo, um insulto grave para uma pessoa vaidosa.

Desço os degraus dos anos e bebo o acre sabor do tempo presente.

O silêncio que transcorre é desesperador. Sinto passar por mim os finais de um outono sem acenos de outras primaveras. Com um sorriso acusador nos meus lábios, e num átimo de desespero arranco o vestido, descalço as sandálias e desfaço o coque. Volto ao quarto abro o guarda-roupa, escolho um terninho azul com gola de renda pura. Calço uns sapatos fechados e
prendo os meus cabelos com um prendedor antigo. Mais uma vez o espelho me denuncia e eu aceito.

Esta é a que restou da outra, digo a mim mesma, numa resignação assumida.

E o tempo e a realidade se cruzam diante da minha fragilidade. Mesmo que meu desejo seja evidente eu jamais conseguirei atar as duas pontas da vida. O fim está fragilizado demais para ser colado ao inicio.

Saio do quarto em direção à sala. Para trás, como se fosse um outro retrato, vou deixando a velha bagagem de um trem, que já partira.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

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