segunda-feira, 1 de maio de 2023

Charles Baudelaire (Poesias Avulsas) 2

 A MUSA ENFERMA

Ó minha Musa, então! Que tens tu, meu amor?
Que descorada estás! No teu olhar sombrio
Passam fulgurações de loucura e terror;
Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.

Esverdeado gnomo, ou duende tentador,
Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
Foi algum sonho mau, visão cheia de horror,
Que assim te magoou o teu olhar macio?

Eu quisera que tu, saudável e contente,
Só nobres ideais abrigasses na mente,
E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara

Como do silabário antigo os sons variados,
Onde reinam, a par, os deuses decantados:
Febo — pai das canções, e Pan —— senhor da seara!
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A MUSA VENAL

Musa do meu amor, ó principesca amante,
Quando o inverno chegar, com seus ventos irados,
Pelos longos serões, de frio tiritante,
Com que hás de acalentar os pezitos gelados?

Tencionas aquecer o colo deslumbrante
Com os raios de luz pelos vidros filtrados?
Tendo a casa vazia e a bolsa agonizante,
O ouro vais roubar aos céus iluminados?

Precisas, para obter o triste pão diário,
Fazer de sacristão e de turibulário,
Entoar um Te-Deum, sem crença nem fervor,

Ou, como um saltimbanco esfomeado, mostrar
As tuas perfeições, através d’um olhar
Onde ocultas, a rir, o natural pudor!
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CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se.

Há perfumes sutis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
— E outros, de corrução, ricos e triunfais,

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d’um clarim.
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ELEVAÇÃO

Por cima dos pauís, das montanhas agrestes,
Dos rudes alcantis, das nuvens e do mar,
Muito acima do sol, muito acima do ar,
Para além do confim dos paramos celestes,

Paira o espírito meu com toda a agilidade,
Como um bom nadador que na água sente gozo,
As penas a agitar, gazil*, voluptuoso,
Através das regiões da etérea imensidade.

Eleva o voo teu longe das montureiras**,
Vai-te purificar no éter superior,
E bebe, como um puro e sagrado licor,
A alvinitente luz das límpidas clareiras!

Neste bisonho val de mágoas horrorosas,
Em que o fastio e a dor perseguem o mortal,
Feliz de quem puder, numa ascensão ideal,
Atingir as mansões ridentes, luminosas!

De quem, pela manhã, andorinha veloz,
Aos domínios do céu o pensamento erguer,
— Que paire sobre a vida, e saiba compreender
A linguagem da flor e das coisas sem voz!
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* Gazil = elegante, airoso
** Montureiras = esterqueiras, estrumeiras.
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O ALBATROZ

Às vezes, no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num voo triunfal, numa carreira audaz.

Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!

Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.

O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Charles Baudelaire, Flores do Mal. Publicado em 1857.
Traduzido por Delfim Guimarães (1924). Atualização do português e notas por J. Feldman.

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