sexta-feira, 5 de maio de 2023

Coelho Neto (O Milagre)

Indo um homem à floresta lenhar, descobriu na broca de um tronco um ídolo grosseiro e logo, acendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e regressou contente à vila.

Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a notícia do achado e não faltaram presságios felizes, atribuindo o aparecimento da imagem a intuitos de mercês com que Deus queria premiar as pessoas.

Na tarde do mesmo dia, que foi de alegre alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o «santo», entre luzes e flores, sobre uma mesa forrada de linho alvo, avultava como uma tora apenas falquejada (desbastada). Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas e, como eram indistintas as feições do ídolo, cada qual o apelidou conforme a sua devoção, e foi assim que o santo teve vários nomes, prevalecendo, porém, o de “Senhor Aparecido”.

A nova propalou-se ás povoações vizinhas. Começaram as romarias e, com elas — porque a cabana não podia comportar a turba de devotos — veio a ideia de levantar-se uma capela, onde a imagem tivesse agasalho digno e todos a pudessem contemplar à vontade, pedindo-lhe o que pretendessem.

Não faltaram materiais nem obreiros e, pouco a pouco, ao som de cânticos, foram subindo os muros da capela.

Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de várias partes — cegos, febrentos, lázaros e paralíticos, todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas. 

O santo, sempre entre flores e luzes, parecia indiferente aos rogos dos infelizes.

Uma manhã, porém, certa velha que chegara, entrevada, pôde deixar o estrame (esteira de palha) em que jazia e, por seu pé, sem auxilio, dirigiu-se, entoando louvores, à cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a proclamar e a agradecer o milagre.

Tanto bastou para que se divulgasse, com maravilhosos detalhes, a notícia da cura espantosa. Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém, rezaram e prometiam, nunca mais houve quem saísse do seu grabato (catre), vendo, se era cego; ouvindo, se era surdo; caminhando, se era entrevado; livre da febre ou sem dores. 

Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia quem lhes respondesse “que a razão estava em eles não terem fé” e com isso os desgraçados resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama crescia.

Com a afluência dos devotos, o povoado desenvolvia-se, o seu comércio, que era mesquinho, tornou-se considerável, e à volta da capela, ergueram-se tendas de trabalho: o oleiro apolejando (amassando) o barro, o ferreiro malhando a bigorna, o carpinteiro acepilhando (aplainando) a tábua, o imaginário esculpindo cópias do “santo” que os devotos traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada de crivo e, como sempre chegavam famílias, iam os pedreiros edificando e as oficinas todas laboravam.

Apesar de não se ter realizado outro milagre depois do desentrave da velha, a romaria não cessava e se alguém, por desânimo, mostrava-se descrente, logo lhe citavam o caso da paralítica, descreviam os seus passos, diziam como chegara à cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçais de prata que ela mandara ao santo com um quadro em que estava miudamente referido o milagre sublime.

E assim, os mesmos que regressavam aos lares sem melhoras, faziam o louvor do santo “que curara a velha de uma paralisia de longos anos”. Outra cura não fez a imagem do santo que da cabana, passou ao altar-mor da capela, mas só com haver andado uma entrevada — benefício para o qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande faina, que se alguém, nas terras de longe, aludia á sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom maravilhado:

— “Não há santo mais milagroso!” E lá vinha a referência à paralítica.

Para milhares de desiludidos só havia aquele consolo, e esse bastava para manter a crença o prestigiar o santo. Como esse ídolo da floresta — a que se atribuiu milagre — quantos há de carne e osso que são potentados por terem tido a sorte de achar uma velha entrevada e de fé... que se levantou do estrame e proclamou a sua virtude.

Ídolos e homens... tudo está em criarem fama.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman

Nenhum comentário: