sexta-feira, 19 de maio de 2023

Cecy Barbosa Campos (Síntese de um amor)

A primeira vez em que o viu, ele se encontrava semiencostado ao balcão do correio, de maneira 
displicente, parecendo não ter pressa. Contrastava com o burburinho do local, onde as pessoas entravam e saíam rapidamente, empenhadas na resolução de seus problemas, sem enxergar os circunstantes.

Quando seus olhos se encontraram, ela sentiu que algo estranho acontecia. De relance, percebeu detalhes que, usualmente, seriam imperceptíveis: o relógio prateado, a camisa creme que aparecia por baixo do pulôver marinho de decote em V, os sapatos esportivos, adequados ao conjunto.

Ele sorriu levemente, e ela. desconcertada, deixou que seu envelope escorregasse pela primeira das caixas, sem verificar a indicação do estado ou se ali era o local apropriado para as cartas destinadas ao exterior.

Passou-se algum tempo, até que se defrontaram novamente. Aproximou-se, como um velho conhecido, e tudo aconteceu como se estivesse apenas continuando, como se estivessem ligados por um grande amor, que existia desde sempre, sem interrupções.

Um dia, sem avisos nem explicação, houve o adeus.

— Não posso continuar vivendo aqui. Estou partindo não sei para onde. — Foram as palavras dele, entrecortadas por um beijo apaixonado, misturado às lágrimas, que jorravam dos olhos da jovem, afogando os dois num ímpeto fremente.

A cidade, como todo o país, tornava-se a cada dia mais agitada e confusa, com notícias de perseguição a estudantes e intelectuais. No período em que estiveram juntos, não conversavam sobre os acontecimentos, que sacudiam o país. Ela se deixara alienar, pois nada mais lhe interessava além de viver aquele amor.

Só depois da despedida inopinada, ela se apercebeu do fato de não conhecer suas atividades ou sua posição política. Os sentimentos que os uniam era a única coisa que a preocupava, alheia aos sérios incidentes que preocupavam a todos os brasileiros.

Aos poucos, ela começou a entender. Sua cidade se elevara acima das montanhas e ultrapassara a mineirice silenciosa que a caracterizava, tornando-se foco da atenção nacional, já que de lá foram dados os primeiros passos para a Revolução de 1964. À medida que a ditadura militar ampliava seus tentáculos, em busca daqueles que, verdadeira ou presumivelmente, se insurgiam contra ela, notícias de perseguição e do desaparecimento de pessoas conhecidas ou desconhecidas se espalhavam, cochichadamente. Pessoas que, de uma forma ou outra, faziam parte do cotidiano da cidade: um artista, um bancário, um vendedor de livros etc.

Juntando as partes, gradualmente, ela ficou sabendo que ele era considerado "subversivo" e que exercia influências no meio estudantil por sua capacidade de liderança. Os Diretórios Acadêmicos das faculdades eram vasculhados, e os nomes de seus participantes devidamente anotados, não exatamente para investigação, mas para perseguição, prisão e tortura.

Mais tarde, ela soube que ele saíra do país e, passados alguns anos, com a volta da democracia, soube de seu retorno.

Encontraram-se um dia, em outra cidade, por acaso. Um desses acasos que o destino prepara para cada ser humano. Intensa emoção aflorou ao se depararem. A mesma emoção que surgira naquele primeiro dia em que se viram.

Entretanto, outros rumos tinham sido tomados, direcionando suas vidas. Agora maduros, eram capazes de analisar suas diferenças e entender que seu "momento" havia passado. Restava a profunda melancolia das lembranças da juventude, misturadas ao ideal de justiça que o movera, interrompendo a trajetória daquele amor esfuziante.

Não mais se viram, mas, vez por outra, o nome dele aparecia nos jornais. Continuava ativo na defesa das minorias e da justiça social. Ela o admirava e ficava feliz pelo seu desprendimento e por saber que, em sua luta contínua, ele encontrava a felicidade.

A última notícia que teve dele, também veio pelos jornais: "Bimotor explode em seu destino à Amazônia, para demarcação de terras". A descrição do corpo despedaçado, confundido com os pedaços do avião era terrível.

Uma dor inexprimível apertou seu peito naquele momento. A dor das lembranças que ficariam para sempre, corroendo o seu coração.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

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