terça-feira, 30 de maio de 2023

Lima Barreto (O meu carnaval)

— Mas foste mesmo recrutado?

— Fui; e comi fogo que não foi graça.

— Como foi a história?

— Aproximava-se o Carnaval. Como era meu costume, vim para a oficina, onde trabalhava. Eu morava em Santa Alexandrina, pelas bandas do largo do Rio Comprido. Ao chegar à oficina, na rua dos Inválidos, o mestre me disse: “Valentim, você hoje tem um serviço externo. Você vai até Caxambi, no Méier, para assentar as caixas-d’água de um prédio novo”. Deu-me o dinheiro das passagens e parti. Conhecia aquela zona e, a fim de poupar níqueis, desprezei o bonde e fui a pé. Passava eu por uma rua transversal à Imperial, quando fui abordado por três ou quatro tipos fardados, do mais curioso aspecto. Eram de diversas cores, formando uma escolta, cujo comandante, um cabo, era um preto. E que engraçado! Desengonçado, pernas compridas e arqueadas, pés espalhados. A farda, blusa e calça, estava toda pingada; o cinturão subira-lhe até quase ao peito...

— Que é que eles te disseram?

— O cabo veio direito a mim e perguntou-me com toda a empáfia: “Onde é que você vai?”. Disse-lhe; mas a feroz autoridade parecia ter implicado comigo, tanto que me intimou: “Você vai à presença do senhor capitão Lulu”. “Mas não fiz nada”, objetei. Ele foi inabalável e não quis atender os meus rogos. Chorei, roguei, mas nada! Num dado momento, um dos soldados disse: “Seu cabo está com muitos luxos. Se fosse comigo, esse paisano ia já”. E fez menção de desembainhar um enorme sabre de cavalaria que tinha à cinta.

— Mas que soldados eram estes?

— Não estás vendo logo? Eram guardas nacionais.

— Percebo. Foste?

— Fui. Que remédio?

— Que te fizeram?

— Vou contar-te tintim por tintim. Levaram-me à presença do oficial. Era um mulato forte, simpático, e o seria intensamente se não fosse a sua presunção e pernosticidade. Era assim o capitão Lulu. Muito apurado no seu uniforme, disse-me num tom imperativo: “Você é um reles desertor. É um ignóbil brasileiro que recusa servir a sua pátria”. Objetei-lhe cheio de susto: “Mas, senhor capitão, nunca fui soldado, como posso ser desertor?”. O capitão Lulu não respondeu diretamente à minha interrogativa, mas perguntou-me: “Como é que você se chama?” Disse-lhe. Indagou ainda: “Onde é que você mora?”. Indiquei: “Rua tal, em Santa Alexandrina”. Isto pareceu-lhe contrariar; mas nada disse. Pôs-se a escriturar num livro e, por fim, falou-me: “Encontrei os seus assentamentos. Você está há muito tempo qualificado neste batalhão — 01.723.436, regimento de cavalaria da Guarda Nacional. Apesar de reiteradas intimações, você não se tem apresentado. Está preso disciplinarmente por oito dias”. Fiquei tonto, atordoado: “Mas senhor”, fiz eu, a tremer. “Cabo”, gritou o Lulu, “cumpra as ordens. Já sabe!”

— Puseram-te na cadeia?

— Não. Revistaram-me, tiraram-me as ferramentas e o dinheiro que levava. Isto tudo na presença do marcial Lulu. Quando este viu os cobres, gritou: “Dá cá! Esses cobres vão para a caixa do regimento”. Após o quê, levaram-me para um outro compartimento, onde me fizeram despir a roupa e vestir uma calça e blusa do uniforme. Das peças que lá havia, a única blusa que me chegava tinha as divisas de cabo. Não quiseram arrancá-las e fui feito cabo de esquadra. Isto não impediu, porém, que me pusessem em serviço árduo.

— Qual foi?

— Meteram-me uma enxada na mão e fizeram-me capinar a chácara durante quase oito dias,
passando fome.

— Como?

— A comida era café ralo e pão duro, pela manhã; e, às duas horas, um ensopado de mamão verde, muito malfeito, no qual encontrar um naco de carne-seca era uma raridade de fazer alegria até chorar. Na sexta-feira que precedia o sábado, véspera do Carnaval, descansei. Ordenaram-me que lavasse a farda e a roupa branca, o que fiz vestindo em cima do corpo a fatiota com que fora preso. Mandaram passar a roupa lavada a ferro; e, no sábado, ordenaram-me que a envergasse e fosse à presença do comandante. Apresentei-me, fiz a continência que me haviam ensinado e esperei as ordens. O Lulu disse para o superior: “Está aí coronel, o desertor que capturei”. O comandante, recostado na cadeira, acariciou o ventre proeminente com as duas mãos e disse com sotaque italiano: “Que vai ele fare?” O capitão Lulu respondeu: “Vai ser minha ordenança, no patrulhamento do Carnaval”. O coronel ítalo-brasileiro só se limitou a dizer: “Bene!”. À tarde, no sábado, Lulu, antes de sairmos, mandou-me chamar e aconselhou-me: “Você me parece boa pessoa, disciplinada. Procede muito bem. ‘A submissão é a base do aperfeiçoamento’, disse Victor Hugo. Se sou oficial, se cheguei à posição em que estou, devo não só ao meu esforço, como também a ser obediente aos meus superiores. Você veio, acompanhou-me; porte-se bem que não terá de arrepender-se”.

— O que era esse tipo, além de guarda nacional?

— Era servente do Senado.

— Que magnata!

— Não te rias. À hora marcada, saímos, eu e Lulu, para a ronda. Deu-me cinco mil réis, para despesas; mas não os pude gastar em uma feijoada, porque o aguerrido Lulu não me dava tempo. Andamos pelas ruas e, à noite, fomos aos clubes, onde pude beber e comer à vontade. No domingo foi a mesma coisa e já tinha ganho a intimidade de Lulu, a ponto de bebermos os nossos calistos juntos. Na segunda-feira, deu-me licença de ir até em casa; e eu que já estava ensoberbado de ser guarda nacional, fui de farda, facão e tudo! Quando cheguei ao largo do Rio Comprido, saltei para tomar alguma coisa. Topei logo com um conhecido que, surpreendido e cheio de espanto, me disse:

“Valentim! Que é isso? Você pode ser ‘pegado’!”. “Por quê?” “Ninguém se pode fantasiar com os trajes militares do país.” Mal tinha dito isto, quando fui preso imediatamente por um polícia que me levou à delegacia onde não me quiseram ouvir e me meteram no xadrez até Quarta-feira de Cinzas.

Está aí em que deu a Guarda Nacional e como foi o meu Carnaval, naquele ano.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Lima Barreto. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. Publicado em 1919.

Nenhum comentário: