Quem conheceu, antes de 1914, o corretor Lourenço Caruru, hoje não o conhecerá mais. Lembram-se todos que ele ia ali, ao Colombo, todas as tardes, tomar um ou dois coquetéis e, se lhe apareciam amigos, logo raspava-se para não pagar mais. Tinha horror aos filantes; hoje, ele os procura, mas aos de alta escola que aprendem com os modestos pilhérias e ditos.
Lourenço Caruru, só no ano de 1917, ganhou líquido oitocentos contos. Nos seus belos tempos dos dois coquetéis por tarde de Colombo, Caruru era um homem morigerado (bem-educado) que, das “francesas”, só queria o cheiro; e, se por acaso, uma delas lhe sentava à mesa, logo punha-se a tremer com medo que a cara-metade lhe aparecesse.
Era homem da família. Depois dos dois coquetéis saía a bongar (buscar) frutas, bombons e quejandos (semelhantes), para levar para os filhos e netos.
Ganhando tanto dinheiro no curto espaço de um ano, Lourenço ficou estonteado e julgou-se um príncipe magnífico.
A primeira coisa que arranjou foi uma princesa — coisa que não lhe foi difícil nos mercados do Flamengo e do Catete.
Correu a um estofador e disse-lhe:
— Preciso mobiliar um apartamento com gosto. É para uma senhora estrangeira de fino trato. Essa “senhora estrangeira de fino trato” começara modestamente como caixeira de botequim em Estrasburgo, passara-se para Paris com a profissão e tudo; e, daí, tentara fazer a “América do Sul”, no que foi muito feliz, como se está vendo.
O tapeceiro, depois de ouvir o homenzinho e pedir-lhe mais detalhes, disse-lhe o custo do apartamento.
— Vinte contos.
O homenzinho indignou-se:
— Mas, então, o senhor pensa que eu sou um “pronto” por aí?! Que eu sou algum funcionário público?!
— Meu caro senhor — disse-lhe o negociante —, eu fiz o orçamento médio. Havia nele todo o mobiliário para os quartos de dormir, boudoir (quarto de vestir), sala de visitas etc. etc. Mas se o senhor quer coisa melhor...
— Por certo! — exclamou o corretor.
— Vou, então, organizar coisa mais requintada.
— Faça e mande a conta. A senhora virá examinar e combinar com o senhor tudo.
Dito e feito: o tapeceiro fez a mesma coisa ou pouco mais do que aquilo que ia custar-lhe vinte contos, cobrou-lhe cem, de acordo com a “madama”, que levou vinte por cento na transação.
Mas Lourenço não estava satisfeito. Queria passar como homem de gosto junto da “madama”. Queria quadros, estátuas... arte! De vista, ele conhecia vários rapazes pintores; mas, por conhecê-los, não os julgava capazes de fazerem qualquer trabalho de préstimo.
“Então, aquele tipo que vive na porta da ‘Galeria’ pode fazer alguma coisa que preste? Qual!” Nesse meio tempo, desembarca um afamado pintor egípcio, Sádi Ben Álfari, cujos méritos os jornais gabam com os mais ternos adjetivos. Lourenço, que, naquele ano de 1918, ganhara, num negócio de cereais e praça de navios, cerca de mil contos, compra-lhe o carregamento todo de quadros, ainda encaixotados na alfândega.
O tal pintor da terra dos faraós mosca-se (desaparece) logo; e, quando Lourenço manda desencaixotar os quadros, fica admirado de só encontrar neles, apesar de ser quase uma centena, a reprodução das pirâmides e da ilha de File, à tarde, ao meio-dia e pela manhã.
“Madama”, que não tinha levado nada na transação, passa-lhe uma grande descompostura e refuga-lhe os quadros. Lourenço os distribui com os amigos, parentes e, até, leva alguns para a casa da família.
Meses depois, os jornais anunciam que o sr. Ramkjolk, de Estocolmo, ia expor uma grande coleção de mármores artísticos, dos mais célebres escultores da Suécia, no armazém de uma casa da avenida Central.
O magnífico Lourenço lê a notícia e a “madama” também. Dias depois, resolvem ir ver os mármores suecos que fizeram o ingente sacrifício de atravessar tantos mares bravios, para nos edificar esteticamente; e os dois vão até eles, não só para receberem um frisson de arte superior, pois os nervos de Lourenço não suportavam outro, como também para adquirirem alguns.
Essa última parte foi logo alvitrada por “madama”, que, a sós, já tinha examinado a exposição. No automóvel de príncipes, vão arrulhando, ele e “madama”. Chegam, “madama” quer este, Lourenço quer aquele; e ambos querem aquele outro.
Resultado: gastam duzentos contos em estátuas.
Lourenço, o Magnífico, sai radiante com a revelação inesperada da sua cultura artística; mas, subitamente, ao transpor a porta de saída, lembra-se de alguma coisa e volta-se de repente, para reentrar.
“Madama” assusta-se.
— Que é Lourenço?
— É preciso pôr o meu cartão em cada um daqueles “calungas” (objetos).
II
Quando Lourenço Caruru, o corretor nouveau-riche, deu balanço dos seus lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou gastar o mais que pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas rodas. Vimos como ele gastou duzentos contos em mármores suecos, a que ele, pitorescamente, denominou — “calungas”. Embora fizesse outros gastos tão avultados, a sua fortuna em nada ressentiu deles, pois os ganhos em especulações da “praça” de navios, de compra e venda de cereais, de carnes e, até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram tais que cobriram todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie (restaurante descontraído), para quem montara uma luxuosa moradia.
Verificando tão extraordinários lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia gastar dinheiro. Ele estava na situação daquele sujeito a quem o diabo dera uma carteira, contendo certa avultada quantia que ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda manhã, ela amanhecia cheia. O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto. Jogava, bebia, viajava, galanteava etc. etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas coisas todas, e, numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto todo o dinheiro da carteira.
O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:
— Então? A tua alma é minha... Não soubeste gastar o dinheiro...
— É que... estou doente.
— Qual, doente! Qual nada! — objeta o demônio. — Se o soubesses gastar, terias escapado do inferno por toda a eternidade.
— Como?
— Fazendo o bem.
Naqueles começos do ano de 1919, Lourenço, o Magnífico, estava em situação semelhante. Ele não sabia como gastar a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo do mobiliário da casa; e fazia as maiores extravagâncias.
“Madama” não tinha também grande força de fantasia. No fundo, ela era uma pequena burguesa, de gostos simples, que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira alto coturno, de Lady Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos cheia de selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice, pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os parentes e fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu dos justos, apesar de tudo.
Ambos sem fantasia, não atinavam como gastar a melgueira (dinheiro acumulado), cujo ganho na algibeira de Caruru representava a morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.
A história de mudança do mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá; eram andorinhas pra lá. A vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama” gostava, porque sempre “refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal, teve medo do ridículo e parou com a coisa.
Lourenço, o Magnífico, muito menos fértil de imaginação fantasista, estava atarantado, mesmo porque, como o tal sujeito da lenda, não sabia fazer o bem.
Os seus princípios de economia e subordinação a um ganho restrito junto ao seu natural visceralmente seco tinham-no feito viver à parte da Caridade. Sempre embirrara com os mendigos:
— É uma vergonha — dizia ele — que, numa cidade como esta, um homem não possa andar, sem que não encontre dez pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O governo não cria asilos?
Há pessoas que têm medo de defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera ojeriza aos pobres e miseráveis. Eram-lhe como espectros...
Não sabia, portanto, como aplicar os seus desmedidos lucros; e tão enleado estava nessa atroz cogitação que até pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele sabia gastar... Mas... teve medo. “Madama” n. 1 era uma fera de ciúmes (ela é quem sabia de quem os tinha); e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não quis levar o propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.
Uma tarde, em que ele chegara ao seu apartamento, antes de “madama”, esta veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais vespertinos. Falou-lhe “madama” com o seu português bordelengo em que ela queria, na ocasião, pôr muita meiguice:
— Sabes, Lourenço, de uma coisa?
— Que é?
— Acabo de vir de uma exposição de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que foi de uma grande casa russa, cujos membros conseguiram salvar do saque dos sanguinários socialistas que tomaram conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino (gênero de tapeçaria francesa do séc. XV); mas não foi deste que eu gostei. O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”. Queres comprá-lo?
— Quanto custa?
— Vinte contos.
— Estás doida, filha! Ainda se fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para se pôr os pés... Nessa não vou eu!...
“Madama” pôs-se de pé e disse com todo desprezo:
— Burro! Selvagem! Sale singe (macaco sujo)! Pois você pensa que é um tapete qualquer? Ora, bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede. Aprenda, macaquito!
— Não sabia — acudiu o corretor humildemente — mas, se é assim, amanhã terá você o tapete.
Não só comprou esse, como mais outros; e a “madama” ganhou dezoito contos de comissão.
III
Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados (I Guerra Mundial) lhe fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador de belas coisas.
Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não contei ainda foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua biblioteca.
Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurante mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões — meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico” para as suas algibeiras.
Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros do Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa.
Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho da princesa, “madama”, só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da sepultura do lar burguês e honesto.
Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos almoços.
Havia morrido um manipanso (homem baixo e barrigudo) célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Commercio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.
Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.
— Não sabes, Caruru, que livros raros há na biblioteca do conselheiro Encerrabodes!
— Estrangeiros?
— Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.
— Por quê?
— Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas, triplicatas e mais.
— Então tens verdadeiras preciosidades?
— Tenho.
— Quando é o leilão?
— Amanhã.
— Vou lá — disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha”.
Despediram-se, e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.
No dia seguinte, o corretor lá estava; Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:
— Dois contos de réis.
Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:
— Quem dá mais?
O “Magnífico” berrou:
— Dois contos e quinhentos.
O comparsa do leiloeiro berrou:
— Três contos!
O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável compra.
Dessa forma, comprou muitos outros.
Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:
— O senhor deve ganhar muito dinheiro na advocacia não é?
— Absolutamente não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.
Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.
Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras soporíferas.
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente na revista Careta, Rio de Janeiro, ano xiv, n. 663, 5 de março de 1921.
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