quarta-feira, 10 de maio de 2023

João do Rio (Penélope)

Ora, precisamente, naquela tarde, tendo deixado o seu automóvel no canto da Avenida, a generala Alda Guimarães subia a rua do Ouvidor a pé, para a prova dos vestidos de meio luto no grande costureiro da moda.

Ia, como sempre, impenetrável. Alda Guimarães, que extraordinária mulher! Quando o marido morrera seis meses antes, ela já tinha uma legenda de honestidade heroica. O general, seu padrinho de batismo, e seu esposo, casara aos sessenta anos quando ela tinha vinte. Em vez de ciumento era paternal; em vez de fechá-la, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho da sua glória. E, apesar dos maldizentes dizerem Alda quase virgem, nunca ninguém ousou lhe atribuir sequer um flirt. Alda não amava o marido como o Romeu; mas respeitava-o. Assim, morto o marido e ela rica, bela, esplêndida, séria - o entusiasmo em torno da sua carne e da sua fortuna, foi grande. Rapazes das melhores famílias, aos quais nunca dera atenção, propunham-se para amantes e para maridos; maridos das suas amigas faziam questão de consolá-la. Se não se fechasse, teria a impressão de que a punham em leilão.

Alda Guimarães fechara-se no seu palacete de S. Clemente. A sociedade causava-lhe ainda mais horror sem a companhia do seu velho esposo. Certo não agia de tal modo por hipocrisia, e sim porque nunca amara, porque lhe parecia impossível o desejo e ainda mais o prazer. À sua camarada, a sra. Lúcia de Villaflor, cujos amantes eram inumeráveis, ela confessava:

- Que hei de fazer, se não sinto simpatia por ninguém?

- Mas, minha querida, uma senhora bonita e rica, sem um homem!

- Irei viajar com a Leônia, ao acabar o luto.

Estava convencida da própria invulnerabilidade. E ria, ao pensar naqueles homens todos da sua roda que tanto a irritavam com propostas indecorosamente idiotas. Ainda o melhor da coleção fora o general, bom, sem pretensões.

Era esse o estado de alma e de corpo de Alda Guimarães, ao subir a rua do Ouvidor, caminho do costureiro, quando viu num mostrador de modista uma curiosa e linda série de véus. Parou; deu-lhe vontade de comprar alguns; entrou. Como as vendedoras estivessem ocupadas, notou que vinha do fundo, servi-la, um rapaz, quase menino. Era moreno, forte, com dois grandes olhos molhados e um cabelo tão lindo que só o S. Sebastião de Guido Reni teria igual.

A sua ousadia era misturada de timidez. Ela sentiu o coração bater, um grande calor subir-lhe ao rosto. Reparou-lhe nas mãos. Eram grandes, másculas. Deviam ser quentes... Essa opinião atravessou-lhe o cérebro cristalizando a ideia de que seria bom tocá-las. Foi instantâneo. Encostou-se ao balcão para não cometer a tolice. Mas se retinha o ímpeto, olhava mais o rosto do adolescente, e via uma boca rasgada, vermelha, primaveral. Ele não se apercebia do efeito produzido. O seu esforço era para vender bem.

– Veja vossência estas voilletes...

Tinha uma voz quente, igual, envolvente, jovem.

- Não, decididamente não escolho hoje. Voltarei.

Saiu. Quase a correr. Pareceu-lhe que se operara nos objetos, nas coisas, nas pessoas uma transformação. Tudo esplendia, tudo ria, tudo era suave e alegre. No costureiro escolheu mais três vestidos, depois das provas. Depois na rua lembrou-se de tomar chá e resolveu logo o contrário. Passou pela casa dos véus, olhou sem querer e não viu senão as vendedoras. Tomou o automóvel. Os seus pulsos batiam e as extremidades estavam geladas, as extremidades dos seus lindos dedos. Em casa, foi-lhe impossível jantar. Quis ler. Suspirou, incapaz de atenção. Dentro dos seus olhos, enchendo-lhe os sentidos estava a figura morena e forte, com os cabelos em cachos e as mãos que deviam ser quentes. Deitou-se. Revolveu o leito. Que solidão! Que imensa solidão! Nem a si mesma ousava confessar a impressão instantânea...

No dia seguinte, porém, como acordasse fatigada da agitada insônia, as palavras que dormiam no seu lábio ansiosas soaram a contragosto.

Seria uma simples incidência do desejo esparso na cidade, aproveitando o momento de abandono de sua alma, o momento em que estava menos preparada a resistir? Mas resistir a quê? O rapaz era um simples empregado de casa de modas, que não lhe dera nenhuma atenção especial. Nem podia. Nem devia. Nem ela consentiria. O desagradável é que ele não existia socialmente, não tinha um nome, um título, uma família ao menos. Nunca por consequência poderia pensar em fazer-lhe a corte. Loucura! Ela, generala, ela que se recusara às tentações dos leões dos salões, ela que afastara propostas de homens admirados, ela invulnerável tendo no cérebro a hipótese não de um flirt mas de qualquer coisa de mais positivo com um pobre pequeno. E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem, tão jovem! Não era possível que outras mulheres ainda não tivessem reparado naquela juventude. Com certeza, pobre, já teria tido amantes ordinárias, dessas mulheres que estragam os rapazes e que são livres, inteiramente livres... Talvez mesmo, num estabelecimento onde entram tantas mulheres elegantes, alguma grande cocotte. Mas não! Ele não parecia contaminado. Ele era novo em folha. Coitado.

Uma languidez, entremeada de agitações, reteve-a nos aposentos até a hora do almoço. Desceu. Almoçou como quem tem medo de perder o comboio. Sentou-se ao piano. A música pareceu-lhe o muro imponderável do isolamento em que vivia. Não pôde mais. Subiu. Vestiu-se com requintes e imensas bondades para Leônia, mandou preparar o automóvel, seguiu para a cidade achando urgente escolher os modelos dos novos vestidos. Quando o automóvel parou, foi como se de repente tivesse de decidir da vida. Tinha um enorme peso nos ombros, arfava, tremia, e as vozes chegavam-lhe aos ouvidos como aumentadas por um tubo acústico. Sentia a vertigem e não sabia bem por quê. Andou assim pela rua. Parou diante da montra, ergueu os olhos para ver através dos vidros o interior do estabelecimento. As vendedoras moviam-se servindo as freguesas. Lá ao fundo o rapaz estava a despachar uma cliente. Tinha outro fato. Estava de claro. O esplendor da sua mocidade era maior.

Entrou, sem hesitar; foi direto a ele.

- Pode mostrar-me os véus de ontem?

Ele fez um rápido esforço para recordar-se.

- Ah! Perfeitamente. Um momento, minha senhora...

E ela ficou, humilhada, com o temor de que alguém da loja fosse desconfiar. Passara uma tarde inteira, uma noite inteira, a manhã toda a pensar naquele ente, ela que bastaria acenar para ter vários secretários de legação, e ele não se lembrava dela - vulgar, vulgaríssimo, talvez nos braços de outra criatura. Mas ele vinha solicito, comercial, querendo mostrar-se negociante, com o orgulho infantil de vender bem.

- Nem lembrei que vossência esteve cá ontem. São tantos os fregueses!

Essa ingenuidade deu a ela um pouco de ousadia:

- Que memória!

- Mas logo lembrei. Até estive a mostrar-lhe umas voilettes.

E sorria. Ela então pôs-se a ver os véus de que não tinha aliás necessidade. Ele abria caixas e caixas. Sobre o vidro do balcão jaziam rendas, gazes, tecidos aéreos de todas as cores. Ela, inconscientemente, estabelecera a confusão fatigosa como um estrategista, para tocar uma daquelas mãos que deviam ser quentes e macias. No momento propício, vinha-lhe um frio e não ousava. Para não o desagradar, apartava mais um véu, e continuava. Sofregamente as suas lindas mãos contraíam-se de jaspe sobre o multicor das gazes. O seu colo arfava. Sentia a boca seca, não podia quase falar. Que iria acontecer se conseguisse? Ele compreenderia? Ele falaria cheio de vaidade com a aventura enorme? Ele não recusaria. E depois? E depois?

- Veja a senhora este que é o mais fino.

Ele curvara-se, segurando o véu com as duas mãos. Ela pendeu para a frente de modo a sentir-lhe a respiração. Cheirava a flor murcha. O seu respirar era um arfar de olores. Alda, com um indizível prazer que a percorria toda. estendeu ambas as mãos. Os seus dedos como por acaso roçaram pelas mãos do rapaz. Não se enganara! Elas tinham um morno calor suave ao gelo dos seus dedos.

- Perdão! – disse ele largando o véu.

Ela olhou-o com toda a súbita paixão do instinto, sem forças. Ele ainda não compreendia, tão longe da possibilidade que a sua juventude não tremia. Mas o olhar continuou, continuou carregado de desejo e de súplica, pesado de coisas loucas e deliciosas. Ele sorriu meio indeciso. Ela suspirava forte. olhando-o. Um risco de malícia ingênua clareou-lhe a boca vermelha. Ela estendeu o véu, sem dele despregar o olhar que sorria. Os olhos dele como quiseram adivinhar. Uma onda de sangue encheu-lhe o rosto.

- Minha senhora...

- Como se chama?

- Ferreira. Manoel Ferreira. Onde devo mandar os véus?

No cérebro de Alda Guimarães uma luta entre o receio e o desejo retinha sua resposta.

Com violência e em seu desvario dizia-lhe todos os pavores do preconceito. Com maior força os sentidos inebriados arrastavam-na. Manoel! Um nome bom, macio. E aquelas mãos, aquele hálito, aquela saúde esplendorosa, aquele cabelo... Que fazer? Que fazer? Dar a direção da sua casa? Nunca se comprometeria até aquele ponto. Ia dizer alguma coisa e disse:

- Por que não os leva o senhor mesmo?

Depois da pergunta, o sentimento de pudor foi tanto, que não percebeu o rapaz, tão atônito quanto ela, baixando a voz, murmurando:

- Só quando fechar a loja! É longe?

Foi preciso que ele repetisse a pergunta. Como despedaçada ela indicou o palacete, saiu sem o olhar, trêmula, palpitante, com a face afogueada e os lábios secos. Chegou assim até o automóvel, teve que cumprimentar o secretário da Bélgica, solteiro; recebeu já instalada a saudação longa do velho Lloyd Balfour da embaixada americana, e quando mandou tocar, sucedera-lhe à atordoação um nervosismo de se explicar a si mesma, de se desculpar, de salvar-se do instante alucinado. 

Ela que jamais tivera uma aventura, ela que não pecara por não sentir necessidade alguma, ela honesta que compreendia o outro sexo pelas profissões: um diplomata é um diplomata, um general é um general, um jardineiro é um jardineiro vendo de súbito num pequeno caixeiro de modas um homem! Como podia se ter dado esse horror delicioso? Era preciso afastar as suspeitas dos criados. Lamentáveis, aliás. Porque livre não era livre, e temia preconceitos quando todas deviam fazer coisas idênticas. 

Para se desculpar encontrava na memória as intrigas e as calúnias do seu mundo contra várias senhoras bem recebidas: o escândalo de Sofia Marques com o motorista, o divórcio de Adalgisa Gomensoro por causa de um rapaz que ninguém conhecia, mil histórias outras. Depois, ninguém saberia se ela realmente realizasse. A essa hipótese, um tremor a sacudia. Podia ser um mariola que a difamasse e que até explorasse. Mas tratava-se de um quase menino. Ele não podia ter mais de dezoito anos. E tinha a face ingênua no envolvente e rápido vigor, acrescido de manhãs passadas ao ar livre - porque necessariamente com aqueles ombros, aquela cinta estreita, aquelas mãos, Manoel havia de remar. E as palavras objetivaram-lhe na mente a criatura inteira. Que vergonha! Como seria bom acariciá-lo, beijar-lhe a cabeleira negra, os olhos molhados de luxúria ingênua, apertar-lhe os braços e adormecê-lo de encontro ao peito...

Desse confuso pensar surgiu-lhe a ideia de estabelecer um plano capaz de evitar todas as suspeitas, apesar de não ter nenhum projeto, nem mesmo o de mandar entrar o rapaz. Saltou assim no palacete, pálida, resoluta como um estrategista, espiando nos olhos dos criados a possível desconfiança, subiu aos aposentos acompanhada de Leônia, Leônia a sua defesa! Mas acabava de enfiar um roupão, quando Leônia indagou:

- A senhora não sai mais hoje?

- Por quê?

- Porque se não sair e não receber nenhuma das suas amigas, eu pediria para sair esta noite. É o meu dia de passeio e iria ao teatro.

Alda Guimarães estarreceu. Era a fatalidade. Iria ficar só com o seu desejo? Jamais! Jamais! Não poderia resistir. Voltou-se para dizer a Leônia que adiasse o teatro. Mas ouviu-se dizer:

- Não; podes ir...

E imediatamente achou que devia responder aquilo mesmo, e imediatamente admirou a calma, a naturalidade com que respondera. Leônia não acreditaria no que poderia estar para acontecer. Assim, desde a resposta, dividiu-se em mente: A Alda picada pela tarântula representava um estado de sub-nconsciência, e Alda calma assistia à representação como no cinematógrafo. Que inteligência! Que lucidez!

- Vou passar a noite lá embaixo, ao piano... Podes sair já.

Preparou-se com cuidado, vestiu um vestido absolutamente de interior tanto no seu mole e flutuante modelado a exteriorizava. Desceu para o jantar. A vida solitária, a tristeza dessa vida como a sentia agora no seu interminável bocejo sem preocupações. Era possível existir assim? Não jantou quase. O copeiro grave passava os pratos, sem que ela os tocasse. Antes da sobremesa ergueu-se. Voltara-lhe a ansiedade como um acesso de febre. Todos os ruídos da rua chegavam-lhe aos ouvidos como chamadas de campainha - as chamadas que anunciariam a presença do pobre pequeno. Afinal não se tratava de nenhum personagem! Era pueril o seu medo.

- Antônio, se vier hoje um menino com uma encomenda de véus, manda-o entrar. Quero vê-los à noite antes de os comprar.

- Sim, minha senhora.

- Ah! Não estou para ninguém.

Foi para a pequena saleta íntima, onde havia dois enormes divãs. A saleta, mobiliada com muito gosto, era como certos salões de França, depois das relações com o Grão-Turco - meio francesa meio otomana. E dava para a galeria de entrada. Recostou-se, fechou os olhos. Todo o seu ser enchia de imagem e do desejo da imagem que a desnorteara. O coração batia-lhe de modo que sentia nas artérias do pescoço o seu desordenado bater. Agora, posto que não tivesse definido o futuro, só a assaltava um receio: viria ele? No imenso silêncio, o receio era quase angústia. Era capaz de não vir! Timidez decerto. Talvez, porém não tivesse agradado. Podia ser... O ridículo de desejar e ser repelida... 

Pela primeira vez reparou de fato numa pêndula (relógio de pêndulo) de Boule que o falecido general comprara em Paris num leilão do Hotel Druot. A pêndula tinha um mostrador tranquilo e desanimado. Dizem que o tempo é breve. Não viram o tempo que leva um ponteiro a andar cinco minutos! Quanto pensamos e realizamos e queremos e arfamos na terra para o desconhecido enquanto um relógio pesponta, à toa, cinco longos, intermináveis minutos! Se ele chegasse, se ele não chegasse! O ruído do relógio parecia compor essa alternativa, falar a gangorra do seu pensamento, enquanto a sua carne era como que aos poucos aquecida por um aflitivo desejo de consolo.

De repente houve um breve retinir de campainha. Alda Guimarães teve um sobressalto como se a tivessem tocado na nuca com uma ponta de gelo. Tomou de um livro, abriu-o. Como os criados são lentos em abrir as portas! Era a eternidade positivamente. A campainha fez-se ouvir de novo, ainda mais breve e tímida. Um enternecimento pelo que aquela rápida vibração exprimia fê-la sorrir. O criado passou enfim, devagar, como compete a um criado de casa importante. Ela ouviu um rumor indistinto. O criado tornou a aparecer:

- É o rapaz com os véus. Mando entrar?

- Dê mais luz. Mande.

Fechou os olhos, de pé. Um turbilhão parecia arrastá-la. Quando os abriu, à porta da saleta, respeitoso, com um grande embrulho, estava o adolescente. Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos S. Sebastião em que os sensualistas do renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores. O criado, ao lado, estava firme. Alda Guimarães fez um esforço:

- Trouxe a encomenda?

- Sim, minha senhora.

- Quero vê-los antes, à luz. Pode ir, Antônio.

- Vossência permite? gaguejou o rapaz.

- Entre. Pode desfazer o embrulho nesse divã.

Com um motivo profissional para mascarar o seu enleio andou até o divã num passo que era leve e forte, curvou-se numa curva de estatuária, sem esforço, macio e vigoroso. Talvez tivesse ainda dúvidas, juventude enrodilhada na inexperiência e assustada com aquele luxo que tornava inacessível a mulher ao lado.

Alda Guimarães sentou-se no divã, admirando-o. Como era diverso dos indivíduos que conhecera, rapazes e homens na sua sociedade - que vinca tanto as criaturas na mesma dobra!

- Vossência desculpe eu ter demorado um pouco.

Ela reparava agora no pêssego maduro que era o seu pescoço. Uma desorientada vontade de mordê-lo obrigou-a a indagar:

- Por que não mandou outro?

- Vossência disse que eu mesmo trouxesse. O que eu não pensei é que desejasse ver de novo os véus.

Essa ingenuidade trouxe a Alda uma súbita confiança.

- Não tem levado encomendas a outras casas?

- Não, minha senhora. Isso é para empregados de outra categoria, os principiantes...

- Ah! Já tem uma categoria?

- Oh! bem modesta.

- E que idade tem?

- Fiz dezoito.

- Era o que eu pensava.

Houve um enorme silêncio. Ele abria as caixinhas.

- Diga-me, Sr. Manoel, faz esporte?

- Um pouco de remo, ao domingo, para divertir.

- Era o que eu pensava. Mas para divertir? Na sua idade há outros divertimentos.

- É uma questão de gosto.

Graças ao hábito de sociedade, ela não só falava com desembaraço como falava com o tom de quem trata com um inferior. Graças ao seu oficio ele respondia com desembaraço, conservando o tom de respeito para com alguém socialmente superior. O instinto aproximava-os para a maior das igualdades. Ele indagava sem o saber com a desconfiança maliciosa: "Onde vai ela chegar?" Ela pensava, com o desejo palpitante: "De que modo resolver tudo isso?" Se ela estivesse diante de um cavalheiro da mesma roda a ânsia do imprevisto não existiria, já teria passado à declaração caso consentisse. Se ele estivesse diante de qualquer mulher não indagaria nada. Fatais estados d'alma que se dão sempre quando incide o desejo em seres de diferente situação social. E tão terríveis que o mais desvairado amor não faz esquecer nem a uma superioridade nem a outro grau abaixo. Assim ele poderia arruiná-la, difamá-la, espancá-la até. Nunca esqueceria a preferência e se não fosse muito bom, estaria perdido, cheio de ambições. Assim ela poderia sofrer, amar, perder-se. Mas seria sempre a criatura que dava a preferência...

Nenhum dos dois pensou exatamente isso. Ficaram na pergunta que é a resolução do problema imediato nesse gênero de choques, ele não ousando, ela não querendo ousar para não parecer mal. Mas as mulheres, mesmo as mais honestas como Alda Guimarães, são fortes quando desejam.

Alda Guimarães ergueu-se, tomou um dos véus na ponta dos dedos, agitou-o.

- Como é lindo, à luz!

Ele sorriu.

- Vossência acha?

- E você? Veja!

Agora tomava dos véus - um, dois, cinco - verdes, brancos, cor-de-morango, negros. Eram como amputações de asas de uma ornitologia nigromática em torno dela. As suas mãos cada vez passavam mais perto do rosto de Manoel, cujo sorriso ia se esteriotipando numa fixidez angustiosa. De repente ela voltou-se. As mãos dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela. Ela escorregou no divã bem junto, a cabeça erguida para ele. Manoel ficou sem coragem de avançar nem de recuar.

- Mas, minha senhora...

Os olhos dela, a boca que ela tinha formosa não podiam mais, revelavam demais - porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simoun de desejo, que lhe fazia bater os dentes, e a sua voz rouca indagar, enquanto passava a vista pelas portas:

- Não vem gente?

Alda não soube que gesto fez. Ele curvou-se, a sua boca magnífica sorveu-lhe a dela como se sedenta chupasse um fruto cheio de sumo. Ela tremeu na mesma febre passando-lhe os braços no pescoço. Então ele despejou-a no divã em súbita fúria. Um imenso, delicioso, doloroso acorde de prazer - o prazer que nenhum dos dois sonhara, sacudiu as almofadas do divã. Sem pensamentos, sem outro fim, alheios ao orbe inteiro, no frenesi de atingir ao bem supremo, atingiram o sumo gozo brevíssimo que é a felicidade única da terra.

E foi com infinita amargura que os pretendentes souberam da partida da incorruptível e formosa Alda Guimarães, oito dias depois de a verem na Avenida, em meio luto da viuvez.

Ia num péssimo vapor francês, só com Leônia e radiante. Ninguém, porém, poderia desconfiar que entre os outros passageiros, havia o amor...

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João do Rio. Contos, in https://pt.wikisource.org/wiki/Pen%C3%A9lope

Nenhum comentário: