domingo, 14 de maio de 2023

Marques de Carvalho (Rio abaixo)


Ao dr. Gaspar Costa

A canoa seguia mansamente, por si só, impelida pela correnteza.

Sentado à proa, fumando num cachimbo de longo taquary (bambu), o caboclo fitava com o olhar indolente os altos e esguios açaisseiros e as longas folhas das bananeiras dum verde-claro alegre, beijados pelos últimos raios do sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na popa, debaixo de um toldo de palha de ubim (espécie de palmeira), estava o senhor moço, abanando-se com uma ventarola de penas vermelhas, ao lado da senhora moça, que espreitava para fora, por um dos pequenos postigos laterais. A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de língua escarlate caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visíveis.

O cheiro acre da maresia saturava o toldo. Periquitos gritavam nos matagais da ilha próxima; cantos sonoros de pássaros chegavam até a embarcação, numa suavidade docemente melancólica, que fazia sorrir de alegre ternura os dois viajantes.

— Que bonita paisagem, Antonio!

— É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias imensamente da viagem.

— Quando chegamos ao sítio?

— Ás 9 horas, isto é, daqui a três ou quatro.

— É pena chegarmos tão cedo!

— Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se num ímpeto de prazer extraordinário.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para eles desde alguns momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo demorada fumaça, para tranquilizar-se.

Os outros, os dois recém-casados, — porque Antonio e Luiza eram noivos: tinham-se matrimoniado quinze dias antes, — experimentavam, debaixo do toldo, uma sensação de inefável bem-estar ao verem-se naquele majestoso sossego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação. Felicitavam-se mutuamente, — com o olhar cheio de carícias, — por haverem podido esquivar-se à vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados de visitas, cujas conversações banais, nulas, pouco interesse lhes davam. Mas agora, — como iriam viver felizes durante aquela quinzena de fuga, na tranquilidade bucólica da roça, sozinhos, passeando sem companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama, lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos igarapés!.... E que festas fariam à hora do jantar, comendo peixinhos pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas matas do sítio?!....

Sugeridas pelo sopro de sossego que parecia rodea-los no meio do rio, estas ideias levaram-nos a conversar animadamente, risonhamente, sem atentarem a que o sol não mais vibrava os látegos luminosos no dorso da corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canoa, afim de gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava num movimento descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado à proa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com o sol, que deixara um rastro avermelhado no céu, onde agrupavam-se em desordem nuvenzinhas cor de nácar, violetas, azuladas, plúmbeas, cor de pérola. Do lado oposto, levantava-se a noite, num andar manso, matemático, extinguindo pouco e pouco o crepúsculo bruxuleante.

O gorjeio dos pássaros cessara na ilha das Onças, que já tinha ficado atrás, à longa distância; só chegavam à canoa os compassos em andante do canto de um carachué (sabiá) que saudava a noite duma pequena ilha, rente á qual passou a embarcação.

— Vê aí no meu relógio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

— Seis e trinta e oito, senhor.

— Oh! então saiamos daqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fora.

Luiza soltou uma exclamaçãozinha, sonora como um soneto de Paulino de Brito, engraçada como uma sátira de Júlio Cezar, com a sua voz dum timbre argentino como um filete de água morna caindo numa banheira de ouro lavrado:

— Ah! — fez ela.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao ombro do marido, extasiada, em frente ao pitoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo naquele sítio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava numerosas ilhotas rasas, cobertas duma vegetação opulenta, que esbatia-se em uns tons escuros, quase indecisos, no limite do horizonte. Um sossego de tabernáculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete (quase negro) do céu, onde as estrelas começavam a cintilar como as pedras preciosas de um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem ocupava nesse instante um espaço do firmamento. Ao longe, à direita da terra firme, tremulava uma pequena luz. A água do rio, no fim da vazante, esgueirava-se pelo costado da canoa num murmúrio dolente. Súbito, na solenidade do silêncio, ressoou um grito de ave noturna.

— Acende a lanterna, José, — disse Antonio ao caboclo, que obedeceu logo, voltando depois à sua posição habitual na proa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes jarros com roseiras floridas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido foi à popa buscar um xale, cobriu-lhe com ele os ombros, aconchegando-lhe muito ao pescoço, amorosamente.

Depois sentou-se ao lado dela. Era profunda a escuridão. Do lugar em que achavam-se, apenas viam na proa um ponto vermelho como um carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornara invisível na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem naquela solidão: entraram a conversar baixinho, muito unidos, de mil coisas que lhes compunham o passado de tão agradáveis recordações. Era para ambos uma inarrável felicidade poderem pairar, assim a sós, das peripécias do curto namoro, dos longos anos que ele passou a ama-la silenciosamente, das emoções e impaciências do dia do casamento, quando aproximava-se a hora em que o pároco de Sant’Anna teria de uni-los.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias, numa excitação dos sentidos. Um movimento instintivo, — inconsciente, talvez; cheio de afeto e volúpia, com certeza, — uniu-lhes os lábios num prolongado beijo de paixão, vibrante como um coro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Pôs-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvagem e cheia de grandiosidade das florestas amazônicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu àquele beijo nascido de duas bocas amantes no silêncio de tão linda noite paraense.

Entretanto, a canoa seguia mansamente, rio abaixo, impelida pela correnteza.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

Nenhum comentário: