Todos, neste mundo, têm o seu pedaço de mau caminho. Que cruz que eu tive com este Avarento! Não lhe escapava fôlego vivo, tudo era vítima da sua ambição. O caso estava em que não custasse dinheiro em cujas circunstâncias eu me achava. Ele não comia quase nada. Não tinha síria, andava caindo em pé. E então, tão pressentido, que qualquer leve mordedura que eu lhe desse estava em cima de mim. O único refúgio que tinha, para lhe sacar algum sangue desse pouco que tinha, era quando contava o dinheiro, que então não sentia. Todo o seu cuidado era que o não sentissem e gastava nisto horas e horas. A vida deste desgraçado era tristíssima. Nunca na vida fez coisa boa à exceção de morrer que todos lhe louvaram e agradeceram. Tinha somitigarias (mesquinharias) inteiramente novas e podia compor neste gênero, apesar dos bons autores que tem havido. Teve a habilidade de ter uns sapatos dezenove anos sempre com as mesmas caras. Tudo tiveram novo à exceção dos rostos. Sempre cuspia nos calções e dizia ele que era modo de durarem porquanto criavam uma codeazinha que, além de amaciar, conservava o tripé. Tinha um colete que vestia sobre a carne que, creio, era da fazenda com que Dejanira vestiu Hércules, porque apenas o envergava no corpo metia também o diabo pois entrava logo num frenesi e num comichão que lhe durava as suas três horas. De forma que a mulher e os filhos andavam sempre à espreita se ele já o tinha vestido. E não havia tradição que ele desse um real a ninguém, depois de o ter no corpo.
Quando queria arrotar fechava a boca e dizia que aquele ar era substância que saía e não tornava. Uma das filhas esteve doente, no meu tempo, e um Cirurgião conhecido receitou-lhe um vomitório que custou trinta réis e que a rapariga devia tomar no outro dia. Mas tendo a felicidade de ter uma cólica na véspera se pôs no estado de o escusar. Mas o bom Pai não esteve pelos autos, arrumou os pés à parede gritando que o dinheiro não se havia de perder e destruir, e que ao Boticário o não querer tomar outra vez que havia de ter paciência e mamá-lo. O que assim lhe sucedeu, e esteve de cama mais de um mês, hoje vai, amanhã vai.
Nunca comprava couve que não fosse espigada, só porque era mais comprida. Sebo, que as velas derretiam, ia para a panela e chamava a isto descobertas econômicas. Alface, para ele, nunca teve folha velha. Arroz nunca precisou escolhido. Peixe, nunca lhe tirou escama, nem guelra. Dizia: Como Deus o criou. Caroço de cereja e de ginja sempre foi abaixo. Cacho que trazia uva podre, chamava-lhe passada. Peixe podre nunca lhe cheirou mal e sempre respondia: Podres tenho eu os meus pecados. Era traste de toda a conta. Jamais teve indigestão pessoa que ele sustentasse.
Defumava-se em carqueja e dizia que a alfazema era nociva, que o cheiro mau era como os amargos que faziam melhor estômago. Durava-lhe um barril de água vinte horas. Bebia da mesma forma que os galegos tomam tabaco por cheirador, chupava por sovina. A água com que se lavava tinha seiscentas serventias primeiro; ao que depois lavava a boca, a cara, as mãos, o cachaço, os peitos, o lenço do tabaco, os pés, e botava-a por fim num craveiro e muitas vezes coava-a e servia-lhe no outro dia.
Tinha um criado universal, era uma Enciclopédia. Logo pela manhã, era comprador, depois copeiro, daí mordomo e passava a cozinheiro. De tarde, servia de engomadeira, à noite, de escudeiro e seguia, no outro dia, a mesma derrota. Tinha dois dias livres na semana, segundas e quintas, que pedia esmola para ajuda do seu vestuário porquanto o ordenado era pouco e nunca lhe pagavam. Até era somítico (sovina) com isto, porque, ao menos, podia prometer-lhe muito visto não lhe dar nada. Mas era tão escrupuloso que nem assim. Disseram-lhe uma vez que era bom para calos cera-bela. Sabem o que ele fez? Ajuntou a cera dos ouvidos para pôr nos calos e o mais e que se achou bom e, daí por diante, nunca mais consentiu que pessoa de sua casa lavasse as orelhas. Andava-lhes todos os dias tirando a cera dos ouvidos para fazer velas e, quando eu saí da sua cabeça, já tinha meia oitava.
Na cama punha lona em cima do lençol para lhe durar mais o lavado. De uma vez, pôs uma filha na rua porque lhe quebrou um copo. Quando fazia a barba, em lugar de sabão punha-lhe greda (barro) para amaciar. Tinha um barrete branco tão sujo que tinha criado, por fora, uma espécie de cortiça. Podia dar qualquer cabeçada com ele que não entrava dentro. O seu divertimento era fazer alcofas (cestos de vime) e torcer linhas e ganhava muitos bons vinténs. Fiar é para que nunca teve jeito; não se fiava nem em si. E outra coisa que ele tinha: aos Domingos, chamava os filhos e punha-se com eles a apanhar moscas para comer e dizia-lhes que era o mesmo que tremoços. E estavam tão mestres todos que, por fim, já as apanhavam com a boca.
Teve uma desordem com um vizinho que era outro sovina e de todos os quatro costados (quatro avós). De palavras foram às mãos. Fez-lhe uma arranhadura na cara. Querelou (queixou-se) dele mas acomodou-se com quatro moedas que lhe deu, depois do que ninguém o podia aturar. Andava-se mesmo metendo para que lhe dessem, para assim ganhar a sua vida. Mas durou-lhe pouco o ganho, que lhe deram uma estocada que esteve à morte. Gastou na cura mais de oito moedas e ficou-lhe um reportório para toda a vida. Um ratinho feito de molho de alho era para ele um dos melhores acepipes (petiscos). Comprava carne de vaca a dez réis. Passados alguns meses é que descobriu que era de cavalo, porque prenderam o preto que lhe vendia, cuja prisão ele lamentava. No tempo dos melões era o seu regabofe por amor das tripas que, dizia ele, eram muito melhores que as de carneiro. Gostava muito de gaivotas e, de pena, era só o que comia. No tempo dos marmelos era a sua ceia. Dois marmelos chegavam para toda a família.
A sua ocupação era emprestar dinheiro sobre trastes. Mas era muito cheio de caridade a esse respeito. Não emprestava senão a quem tinha fome para assim socorrer o seu próximo e juntamente porque lhe dava quanto ele queria de usura. O seu fato e de sua família era todo comprado na feira da ladra e já um filhinho pequeno começava a estar tísico.
Um dia que jantava (que eram poucas vezes) não ceava e andava a gritar por chá de macela que não queria morrer de indigestão. Um caso que lhe aconteceu com um destes amola-tesouras. Chama-o um dia a rogos da mulher, para lhe amolar uma tesoura, que além de muita ferrugem e pouco aço lhe faltava um bico. O pobre homem foi-lhe preciso, fazendo a ponta a uma, encurtar a outra para ficarem iguais, além de que gastou muito os ferros para lhe tirar a ferrugem. Apenas o meu amigo Avaro vê a tesoura naqueles termos, entra a gritar que lhe tinha destruído a tesoura, e isto uma tesoura de Guimarães! O mais antigo traste e o melhor que tinha em casa! Que a tinha deixado curta e magra! E foi tal a gritaria que não deixou dar ao homem a sua razão. Pôs o ofício às costas e foi dando às trancas e ele ficou à porta da rua com a tesoura na mão, fazendo uma tal declamação sobre a danificação da dita que se juntaram quantos rapazes tinha o bairro a dar-lhe surra, do que ele fez pouco caso porque apenas tinha tempo de chorar a sua perda.
Mas, sobre todos os casos que lhe sucederam, o mais decantado foi o que lhe aconteceu com um Dentista. Doía-lhe muito um dente que lhe tirava só o dormir. Porque o comer isso tirava ele mesmo a si. Resolveu-se a sacá-lo e, já se sabe, um dente para ele eram dois porque, ter que dar dinheiro, era tirarem-lhe um dente da boca. Enfim, depois de muitas dores, muitas consultas, muitas resoluções, foi a casa do Barbeiro. Senhor Mestre, quer-me tirar um dente? —Todos, meu senhor, com todo o gosto. É de baixo ou de cima? — Do meio, senhor Mestre. — Quer descarnado ou de uma vez? — Como é ele mais barato? — O preço é o mesmo. — Então que diferença faz vossemecê dessas duas perguntas? - É que descarnado tem mais dores, mas menos perigo. — Pois, assim como tem mais dores, devia levar menos dinheiro! Enfim, quanto é o último porque vossemecê me tira? — São seis vinténs a tarifa e o brio de cada um... — Quem pode ter brios, cheio de dores? Pois senhor, eu sou um pobre homem, é o primeiro dente que tiro. Faça-me vossemecê o favor de tirar este a contento e, se eu gostar, pagarei os mais pelo preço que vossemecê me diz. O Barbeiro riu-se. Manda sentar o freguês, salta-lhe nas costas e arranca-lhe um dente queixoso. Ele, que se vê com o dente são fora, ficando-lhe o podre, começa num berreiro, blasfemando contra o mestre. Ao que este respondeu muito sossegado: — Vossemecê não queria o dente fora a seu contento? — Sim senhor. — Pois eu tirei um também ao meu. Se lhe não serve, não volte cá mais que eu não perco muito no freguês. Acomodou-se porque lhe disse um que ali estava que podia querelar por ter havido sangue, e esta era a sua balda (mania) para ver se ganhava o seu vintém. Mas não teve efeito desta vez por não ser prática haver querela por dente fora não sendo tirado com pedrada. Foi então a outro que lhe sacou o podre por um tostão tomando-lhe em desconto uns botões da camisa. E estando cansado de estar numa cabeça tão insignificante, além das fomes que também passava e sem ter meios alguns de ir a outra cabeça, resolvi-me expor a vida para me salvar, passando a um pescocinho que ele tinha e trazia muito sujo na ação de ele o dar à lavadeira. A qual metendo-o na roupa e pondo-a à cabeça, eu lhe passei para ela, que apesar de trazer carapuça lhe fiz de sobressalente a Carapuça IX.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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