FINAL DE SEMANA prolongado no meio do mato. Sítio. Silêncio absoluto, sem as interferências nocivas da grande cidade. A mim, em particular, essa tergiversação (1) oportuna, fez um bem danado. Amei. Amei de paixão essa escapatória sem amarras, sem aviso prévio, sem bilhetes, recadinhos, mensagens e avisos, dando conta à terceiros. A gente acaba se tornando, sem perceber, a grosso modo, um “esparro” dos que nos cercam e apregoam, a todo instante, nos querer bem. Ledo engano!
Fazia tempo que vinha tentando me apartar dessas loucuras estafantes e desenfreadas do dia a dia. Mesmo norte, das corridas infindáveis, dos problemas, das pessoas chatas e pegajosas, dos telefonemas intermináveis e enervantes, das redes sociais. Por falar em redes sociais, isso me atinge diretamente o centro nevrálgico e, de certa forma, me torna um monstro, nos moldes do God Only Really Knows do Lago Ness (2).
Não há nada mais nojento que as redes sociais. Por elas, e em nome de suas teias avassaladoras e escravizadoras, acabou de vez a privacidade e a intimidade das pessoas. O ser humano, como um todo, perdeu o carisma. Atirou no lixo a benevolência. Esqueceu, num canto, a sua compostura, o seu recato, o seu discernimento. Cada um, em particular, demoliu, de forma trágica, a sua identidade. Assolou, desmantelou para sempre o seu momento de paz e sossego.
O “eu” geral de cada ser vivente virou um amontoado de imundícies, onde se armazenou numa torre maior que a de Babel, uma edificação enorme repleta de entulhos da pior espécie. Em nome do progresso, o ser pensante (pensante?!) se tornou escravo da sua imbecilidade. Escravo aqui entendido, como lacaio na pior maneira de expressão contida dentro dessa palavra.
No bojo dessa atoleimação (3) infrene e delirante, a poesia que emanava do cérceo (4) da alma, se perdeu nas confusões dos “Facebooks”, dos “Twitters”, “Instagrans”, “Blogs”, e “WhatsApp”, etc., etc., sem mencionar outras frivolidades amalucadas e estúpidas que surgem a cada dia, minuto a minuto, segundo a segundo, brotadas dos bueiros e sumidouros dos esgotos que nós mesmos abrimos ao nosso redor.
Daqui do meio do mato, metido até os entressachados (5) do pescoço, dentro do nada, que em nada, me lembra o “Tudo” da cidade assassina, com as suas correrias e barbaridades, longe da terra, do mundo, dos maçantes e tediosos das campainhas, dos semáforos, do sufocante “para-para”, dos ônibus e carros, das buzinas..., entre árvores, folhas, plantas, bananeiras, laranjais, cafezais e orquídeas, me sinto renovado.
Entrelaçado aos maracujás apanhados no pé, às mangas chupadas à sombra da própria árvore, vacas, bois, porcos, patos, marrecos e galinhas, me reconforto interiormente. Curo as feridas que aguilhoam e machucam. Trato as lesões que atormentam. Afasto o cansaço que não dá folga. Faço uma espécie de “Raio-X”, de cabo a rabo, do meu cotidiano.
Consigo vislumbrar nitidamente através das chapas eletromagnéticas, o avesso, o antagônico, o divergente do meu recôndito cansado. Percebo a olhos claros, o coração em pedaços. O sangue correndo desesperado. Tudo em mim parece sem cor, desconexo, esfacelado, frio, gélido, compactuado com o irrecuperável.
Porém, o pouco que caminhei sem eira nem beira, monopolizado às horas calmas da manhã, os pés sem meias e sapatos apertados, cobrindo o esqueleto uma bermuda velha encimada por uma camisa rasgada, aderida ao conforto da terra batida, ajudou um pouco. Um pouco não, muito a melhorar o quadro lúgubre das minhas tristezas internas.
Igualmente, das frustrações estropiciosas (6) que se instalaram e criaram formas múltiplas, contudo vazias e sem nenhuma razão para existirem. Até antes de chegar aqui –, eu me sentia velho, cansado, malparido, desalinhado, torto, precário, sem energia, força e vitalidade. Assemelhava, bem sei, a uma lagartixa assustada deslizando parede acima, sem rumo certo. Meu corpo parecia irmanado na mesma sensação de indefinida desgraça –, dores aqui e ali, apoquentações e flagelos despejando sintomas inconsequentes na solidão ímpar que insistia em não dar tréguas.
Contudo, o silêncio do lugar, a singeleza da morada simples, das portas e janelas sem chaves e cadeados, sem luz elétrica; a escuridão das noites sendo vencidas por lampiões à querosene; a fumaça forte do fogão movido à lenha; as panelas fumegando sobre ele, cercadas pelo cheiro do queimado me avivou o que parecia sem vida, desfalecido, morto e enterrado.
Em fluxo igual, engrinaldou incandescentemente com traços novos a esperança carcomida e desbotada. Fez nascer em socorro, um sorriso diferente num rosto embalsamado, enquanto as vistas sem a euforia do viço maléfico, se alegraram por não respirarem os hipotéticos da estagnação, não só da estagnação, usque (ainda que), igualmente, da vida repetida revisitada num vai e vem inconsequente e despropositado.
Percebo, estarrecido e atônito, que me envolvi nas vísceras do lugar e me absolvi da leveza metafísica que encanta o espírito, tirando dele os morbos (7) e os camarços (8) do cansaço e soprando, para o divorciado aquém do mensurável as brumas negras dos descontentamentos e das infelicidades mais atrozes.
Pego-me, nesse instante, renovado. Avivado, leve; solto; a base-eixo que me sustenta aliviada dos estresses maçantes. Devo considerar que esse efúgio momentâneo e inexplicável, sem nexo, sem rumo, sem resguardo, à mercê do destino; servirá (ou melhor, serviu) para livrar meu “eu” doente de uma UTI às portas de se abrirem às carreiras, com todas as inconveniências que se atrelariam juntas; de roldão, mesmo pacote, um cabedal de aberrações as mais degradantes e ignominiosas.
“Meus todos, carnes e ossos, “ossos e carnes”, se refizeram de certas dores alojadas. Algo indescritível, tipo assim, inesperado, vestiu a alma inteira de arranjos festivos e, como num acender e apagar de matizes, renasci de novo. Reacendi-me por inteiro, me solidifiquei para o amanhã que ainda dorme tranquilo no sono brando dos meus devaneios mais enternecidos e sensíveis.
Meio do mato. Sítio. Silêncio absoluto. Receita perfeita do Doutor Natureza, sem a presença das tarjas pretas para as indisposições e padecimentos que estavam acabando comigo, pouco a pouco, numa consonância anêmica, desmedrada, adelgaçada, fúnebre, num vilipêndio como o de um cadáver sendo calcinado em câmera lenta para logo depois ser atirado aos vermes.
Amanhã retorno para a selva de pedra. Volto esvaziado, desabitado, ocioso de aflições e tribulações hematológicas. Chego oco de agruras, custeado por fluidos benfazejos. Inebriado pelas delicadezas e branduras do mato virgem, da taciturnidade das noites estreladas.
Aporto vivo, feliz, realizado. Achego-me otimista, dono de mim e do pedaço. Pronto para esmiuçar os afazeres circunspectos que se desacomodaram e partiram em busca de outros encostos. Estou refeito, reparado, regenerado, melhorado. Reformulado dos fios de cabelos à ponta dos dedos dos pés. Pronto para mais uma semana a sobreviver pelejando intensamente com as crueldades anômalas e lúgubres da vida.
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Notas:
1 – Tergiversação – A mesma coisa que fazer rodeios, se desviar de uma conversa.
2 – God Only Really Knows do Lago Ness – Tradução de “Só Deus sabe realmente” com relação a ser verdadeira ou não a história do monstro do Lago Ness.
3 – Atoleimação – Variante de abobalhado ou boboca.
4 – Cérceo – O que foi cortado rente, ou pela raiz.
5 – Entressachados – Intercalados, misturados ou mesclados.
6 – Estropiosas –Estragadas ou transtornadas.
7 – Morbos – Doenças ou enfermidades.
8 – Camarços – Sentimentos de infelicidade ou adoecimentos.
Fonte:
Texto e notas enviados pelo autor.
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