segunda-feira, 8 de maio de 2023

Artur de Azevedo (O fantasma branco)


I

Não havia no mundo senhorita
Mais romanesca do que Filomena.
Das três filhas do Arruda a mais bonita.

O honrado pai dizia-lhe: — Pequena,
Se este sistema de viver não mudas,
Tu para tia hás de ficar, e é pena!

Graças a Deus, porém, são mais sisudas
Tuas irmãs; não leem livros franceses;
Perpetuarão a raça dos Arrudas!

E, de fato, passados poucos meses,
O velho pai casou as outras duas,
E em dois anos avô foi quatro vezes!

— Que intenções, Filomena, são as tuas?
Julgas tu, minha filha, que os maridos
Andam a três por dois por essas ruas? —

Assim falava o velho entre gemidos,
Vendo que a moça, fria e desdenhosa,
Recusava magníficos partidos.

Em todo o pretendente achava prosa,
Prosa vil, prosa chata; nenhum era
O noivo ideal que ela sonhava ansiosa.

E, assim, correndo atrás de uma quimera,
A formosa romântica da vida
Passava a fugitiva primavera.

Sempre de uma alva túnica vestida,
Solto o cabelo que lhe aos pés chegava,
E em longa cisma histérica perdida,
Se, ao luar, no jardim, notivagava,
Se se sentava estática num banco,
Uma visão fantástica lembrava.

Certo gaiato irreverente e franco,
Que em toda a gente honrada nomes punha,
Um dia lhe chamou Fantasma branco,
E pegou essa alcunha.

II

Desesperava Arruda, a toda a hora,
De ver um dia a moça enfim casada,
Principalmente agora
Que era a um fantasma branco equiparada,
Quando em noite de luar foi despertado
Pela voz de um tenor desocupado,

Que, por baixo do quarto da donzela,
Cantava, acompanhado
Por um choroso violão. Arruda,
De face carrancuda,
Espreitou com cautela:
Filomena, à janela,
No peitoril fincado o cotovelo,
A cabeça apoiada
Na mão, solto o cabelo,
E do clarão da lua iluminada,
Escutava este canto,
Que lhe causava singular encanto:

“Dos belos olhos afasta
Do sono agora o torpor,
E vem ver, donzela casta,
O teu Messias de amor!

Se, reservado, até hoje
Teu coração não falou,
Vê se um suspiro lhe foge...
Aqui me tens, aqui estou!

O trovador do teu sonho,
O noivo do sonho teu,
Soltando um canto tristonho,
Ei-lo, meu anjo, sou eu!

Tu dir-me-ás: — Não te conheço!
Vai-te embora, trovador! —
Mas há muito que padeço,
Que morro por ti de amor!

Sou pobre, sou muito pobre;
Não tenho nada, meu bem;
Mas o manto que me cobre
Há de cobrir-te também.

É o meu sonho mais sonhado,
Donzela casta e louçã,
Ser hoje teu namorado,
Ser teu esposo amanhã.”

Calou-se o trovador. Silenciosa
Estava a noite amena;
Só se ouvia, amorosa,
Soluçar Filomena.

O namorado perguntou-lhe... em prosa:
— Tu não me respondes?... que silêncio é esse?...
Porém, antes que a moça respondesse,
Gritou o Arruda velho: — Vai-te embora,
Grandíssimo patife,
Se não queres que eu saia lá pra fora,
E co’um cacete os ossos te espatife! —

Como que por magia,
Do trovador sumiu-se a sombra esguia,
De chapéu desabado,
Capa traçada, violão ao lado.
Como que por magia, Filomena
A janela fechou. — Aquela cena
Continuou no quarto da donzela,
Onde o zangado pai ralhou com ela.

Mas a moça fez frente
À cólera paterna, e, formalmente,
Lhe declarou que aquele suspiroso
Menestrel medievo,
Que parecia de Amadis coevo,
Era o seu ideal misterioso,
E daquela guitarra apaixonada
O meigo som lhe parecera um hino.
— Qual guitarra qual nada!
Era um reles violão! Mas eu ensino
Àquele capadócio, se se atreve
Outra vez... — Mas, meu pai... — Que o diabo o leve!
Aquilo é sujeitinho sem ofício!
’Stás aqui, ’stás no Hospício! —

III

Tinha Arruda uma loja de calçado.
Foi no dia seguinte procurado,
Logo depois do almoço,
Na loja, por um moço
Que lhe falou assim: — Brito me chamo;
Sou muito rico. Eu sua filha amo;
Ser seu esposo é meu desejo ardente.
Sei que ela é romanesca, e certamente
Não quererá marido
Como eu, com toda a gente parecido.
De um ardil lancei mão, e agora espero
Que o senhor me perdoe, sou sincero.

O homem do violão, o namorado,
Num capote embuçado,
Que esta noite cantou pífias quadrinhas
Que aliás não são minhas,
Era eu! — O senhor? — Eu, em pessoa!
— Então aquilo era fingido? É boa!
— Outro meio não há de conquista-la...
— Pois, meu caro, arriscou-se a uma bengala!
— É por isso que venho preveni-lo,
Pois pretendo tranquilo
Levar por diante o plano astucioso.
O trovador há de voltar; furioso,
O senhor fica... — Ficarei, descanse.

— Haverá tudo como num romance:
Prisão... correspondência interceptada...
Paterna maldição... lágrimas... pranto...
Sua filha por mim será raptada,
E em casa honesta ficará, enquanto
Não se fizer o nosso casamento.
Mal se realize este acontecimento,
Iremos, eu e ela,
Morar numa casinha muito pobre,
Das de porta e janela,
Onde tudo nos falte e nada sobre,
A não serem misérias e arrelias.
Afianço-lhe que ao cabo de alguns dias
Ela estará curada
De tanto romantismo. — Isso me agrada,
O velho respondeu, porque duvido
Que de outra forma encontre um bom marido.

IV

Tudo se fez conforme o plano. A bela,
Depois de presa e de maldiçoada,
Saiu de casa e foi depositada,
Até que o Brito se casou com ela.
Vieram, logo depois, dias de fome,
E o menestrel dizia
Que quem ama não come:
Vive de amor e vive de poesia.
Filomena já estava resolvida
A procurar de novo o lar paterno,
Quando o marido, carinhoso e terno,
Lhe disse: — Meu amor, foste iludida...
Agora, que o romance te abandona,
Saberás que sou rico e tu és dona
De um palacete onde não falta nada! —
E revelou-lhe toda a farsalhada,
Co’a participação do pai furioso.
— Que tolice! Por que não foste franco?
— Oh! Se o fosse, o marido venturoso
Jamais seria do Fantasma branco!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Arthur de Azevedo. Contos em verso. Publicado originalmente em 1909.

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