Também não era das piores esta cabecinha. Este tal dono da loja já tinha sido caixeiro de três. Era examinado na ordem e ricaço. Ninguém sabe o que é comprar água nos barris e vendê-la aos copos: é um maná. Este meu amigo então pegava em tudo o que era ganhuça (ganho), já se sabe, licitamente, e sabia bem do negócio. Açúcar, nunca o comprou senão àqueles que o furtavam, bem entendido, mais em conta. Valha-me Deus, a gente não há de ser tola! Fazia café de alfarroba torrada que ninguém o conhecia. Antes era gabado pelo coberto, sem fazerem a descoberta. Tinha uma casa na qual lhe vendia uma criada velha o chá já fervido, mas ainda muito capaz. E não lhe tirava o suco (como diz certo Autor) sete vezes. O mais que chegava era a cinco, e ainda o vendia depois para tirar nódoas.
Fazia cevadinha e misturava-lhe farinha de favas que fazia muito boa união, além de lhe dar o gosto. O chocolate era a melhor coisa que ele tinha. Botava-lhe graxa de forma que era gordo e substancial. Tinha uma receita de fazer pão-de-ló sem ovos. Que muita gente que jejuava, (desta pouco escrupulosa), tomava a sua xícara de chocolate e o seu pão-de-ló e ficava jejuando.
Fazia um licorzinho de amora que era uma suspensão! Então e jeito para acarinhar fregueses! A isso ninguém lhe chegava. Vendia logo pela manhã os seus dois tantos de aguardente. Daí entravam os almoços que era um nunca acabar. Havia muitos que nunca almoçavam em casa. Era-lhes mais fácil, quando tinham só um tostão, deixarem toda a família em jejum, que assaz com um tostão de pão matariam a fome, só por virem para o botequim conversar e tomar o seu café com a sua torrada. O que é o costume! O ponche, à noite, era o chafariz d'El-Rei com todas as suas bicas. Não havia mãos a medir. E então que gritaria! Ah, senhor Manuel, mais forte! Outro acolá. Menos aguardente. Outro dali. Bote-lhe capilé. Venham bolos. Venha licor. Oh rapaz, paga-te... Era um temporal desfeito e uma parte iam sem pagar, outros mandavam assentar. E o malditinho do negócio era tão seguro que sempre se ganhava. Então que histórias se não contavam ali! Que novidades! Que mentiras! Que desaforos! Era um gosto.
Ia ali um que tinha namorado todas as moças daquele bairro. Sabia-lhes os nomes, as idades, os teres, os pais, as faltas, os acréscimos. Que guapo rapaz para fazer um mapa da Índia! E andava por ali perdido! Também havia outro que era muito esperto. Não lhe escapava lenço. já por fim dava vontade de rir ver todo o mundo a queixar-se e a assoar-se à mão porque havia alguns que em lhe furtando o primeiro ficavam logo nesse estado. E outro que inculcava onde havia partidas com Senhoras que davam o seu chá, cantavam modinhas e faziam as suas rifas! E outro que secava a gente para lhe assinarem uma obra que ele queria imprimir, intitulada Arte de sacar dinheiro. Que julgo seria obra muito perfeita porque ele tinha muito jeito. Ainda pilhou alguns. Mandou-a imprimir em Salamanca, por ser mais barata a impressão e estava-lhe tirando as chapas um Albardeiro. Há de ser bonita obra depois de acabada. Queira Deus que fique bem encadernada. Também ia lá um que ensinava a dançar e tinha botado grandes discípulos. Um macaco que dançava na corda, ele é que o tinha aperfeiçoado. Fazia décimas com os pés e andava compondo a segunda parte da fofa por pontos (já tinha três na cara de uma navalhada que lhe deu um discípulo que era muito seu amigo e uma boa alma) e tudo com os pés. O dono da casa aprendia a fazer peloticas (bolinhas de prestidigitação) e já estava muito adiantado. Raras vezes perdia quando jogava e sabia fazer tombar os dados para onde queria, sem os chumbar. Eu digo o modo, que pode ser que sirva para algum miserável não cair. Quando queria que mostrassem menores metia os maiores debaixo de água, isto é, só metade do dado. E quando queria que servissem, tirava-os, limpando-os muito bem. E enquanto o osso conservava a umidade, que sempre era a sua meia hora, tombavam para ali. E ainda que os queixosos os partissem, nada achavam. Sabia fazer muitas coisas destas. Tinha um anel com seu espelho em lugar de retrato, virava-o para a palma da mão e com um baralhinho de cartas a jogar a lasca, vendo todas as que estavam por baixo, nem um cavalo de cortesias o fazia melhor numa praça. Mas, enfim, tudo isto lhe tinha custado dinheiro para o saber e todos devem ter prendas em que se fiar se lhes suceder uma desgraça. Era verdadeiramente um refinado brejeiro sem mistura alguma. Ali não havia joio nem ervilhaça, era trigo de Prioste. Tinha começado por garoto, era garoto e havia de acabar em garoto. Com bem o digamos. Também não era escrupuloso. Se lhe levassem uma lâmpada a vender, sendo barata, não perguntava de que Igreja era. Tinha trinta anos, tinha-se confessado vinte vezes e vinte vezes tinha estado no segredo por bagatelas. Mas Padre e Ministro nunca tinham ouvido da sua boca senão um não senhor. Podem supor que tal era a bestinha! Pobre não entrava na sua loja que não levasse esmola, nem também rico que não saísse pobre.
Ali havia toda a qualidade de isca e de anzol, de forma que ultimamente já era homem de bem, já tinha dinheiro, e ninguém perguntava como ele o tinha adquirido. E nisto acho eu razão. Cada um adquire-o como pode ou lhe deixam, uns com mais, outros com menos trabalho. Já tinha quatro botes seus e estava para pôr uma taberna. Aos Domingos pedia para a caridade e fazia-a muita gente. Também tinha duas seges de aluguel e quando eu me retirei da sua cabeça, andava para pôr uma loja de barbeiro para vender barbas pelo grosso, isto é, fazenda atacada.
À loja ia ali um Procurador de causas, homem já velho, de cabelo seu espigado. Tratava-lhe de uma demanda de interesse. Levava horas e horas a conversar com ele. Eram tão amigos. Um dia de anos foi o tal lá jantar. Já se sabe, muito comer, muito beber. Depois de jantar foram ambos para a cama, dormir a sesta. Logo reconheci o tal Procurador, que era o mesmo em cuja cabeça minha mãe me tinha parido. Os mesmos animais têm amor à Pátria. Eu não me pude vencer. O gosto de tornar aos lares onde tinha visto a primeira luz e chuchado o primeiro sangue, me meteu cobiça de passar àquela cabeça a que servirá a Carapuça XI.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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