Também não passei mal na cabeça do amigo cabeleireiro, pois que nele se verificava o ditado “Em casa de ferreiro, espeto de pau”. Jamais se penteava. A cabeça parecia um molho de carqueja e precisava de outro. Era verdadeiramente um mato bravo, cheio de muita bicharia. Já digo, não passei nada mal aqui. Só precisava o cuidado de quando ele metia o pente na cabeça, pois tudo fazia tão estouvadamente que, a encontrar-me algum dente, ficaria de espeto. Mas no mais não tenho de que me queixar, porque até passei uma vida alegre. Ele jamais penteava que não cantasse modinhas ou minuetes. E, se estava em pé, sempre andava aos saltos, de forma que, enquanto não me acostumei, tive alguns sustos.
Os dias que eu passava melhor eram os Domingos e dias Santos, porque, a respeito de chuchadeira de cabeça, ele tinha muito pouco chorume, à exceção de porcaria. Pois é um engano dizer que esta alimenta os piolhos. Não senhor, é conforme eles são criados. Como ia dizendo, como aqueles dias eram destinados à contradança, coisa da sua última paixão, e em contradanças dobradas nenhuma forçureira (lésbica) o desbancava, fazia figuras que o mais destro escultor não lhe metia o dente. Uma vez, ao fazer de um jacé (melancia), fez-o tão perfeito que parecia um canudo. A Senhora que tinha a felicidade de ser seu par, jamais o rejeitava, de forma que chegou a ter tantos pares que ultimamente pôs uma loja de sapateiro.
Mas vamos ao caso. Aos Domingos botava sobre aquela porcaria toda, pós, banha, sebo e etc. Então tinha eu o meu banquete, e os meus companheiros, apesar de que nunca me dei com piolho nenhum e, pelo sem-sabor com que passava, é que me retirei. Apenas havia ali um piolho ruço, pardo, que se chamava Adufe[1], na verdade piolho muito bem criado. Mas poucas vezes dormia na cabeça. Entrou a ter umas febres que pareciam sezões, de forma que, à noite, ao deitar, passava para o colchão que era de crina e mais fresco. Porém, teve a desgraça de se lhe meter uma ponta de crina pelo umbigo e, no mesmo instante, morreu.
Eu dormia-lhe sempre no cachaço (parte posterior do pescoço) e aí tomei amores com uma pulga que sempre naquele lugar lhe saltava. Jamais nos sentiu. Dormíamos como pedra em poço e todo o tempo que ali assisti jamais tive o menor susto. Apresentei-lhe um dia uma trincadela atrás de uma orelha ao tempo que ele imaginava no método de fazer de estopa cabelo (o que teve quase concluído). Deu um irra e coçou-se no nariz cuidando que era aí que lhe doía. Se é de noite, eu passo-lhe para o nariz só para o ver coçar na orelha. Quase tudo fazia às avessas.
Numa ocasião, penteando uma cabeleira, fez-lhe o chicote no topete e a marrafa [2] no rabicho. E ralhando o dono pelo engano, teimou e reteimou que estava bom, dando por desculpa: - Veja vossemecê os penteados que por aí se trazem. Conheça a moda. Não vê os chicotinos metidos debaixo da casaca, vendo-se só duas farripas e adiante caindo sobre os olhos? De forma que o homem não se quis botar a perder e pagou-lhe, e ele veio tão ufano que daqui por diante sempre teimou e fez tudo às avessas. Mas pagou-o bem porque um alfaiate fez-lhe uma casaca e pos-lhe os quartos de trás nos dianteiros. E depois apostou com ele, que assim é que devia ser dando a sua razão que, para a cabeleira que ele tinha feito, era preciso que fosse assim a casaca. E dizia, demais a mais, que, sendo de moda os quartos de trás o mais estreito que pudesse ser, ele assentara que os devia por de forma que, por mais que procurassem naquele sítio os não vissem, para assim apurar a moda e chegá-la ao auge da sua perfeição.
Ultimamente, num Domingo, estando numa contradança, ao cruzar o par, encontrou-se com uma Senhora e deram tão grande cabeçada que eu, que tinha fugido para a raiz do cabelo da testa, para estar mais fresco, no choque que deram, caí para a cabeça da Senhora, a qual sentindo-se dorida e algum tanto desconfiada, por estarem todos a rir, não quis dançar mais e, sem valerem desculpas, foi pedir à Madrinha que tinha vindo com ela, que se queria retirar. Eu fiz minhas tentativas de saltar ao chão, para tornar à antiga cabeça, mas como estava tudo em desordem, receei ser pisado e fui na cabeça da Senhora, na qual se verá a Carapuça III
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Notas do Autor
Adufe = O nome desse piolho era o de um instrumento asiático, que equivale aos nossos Adufes.
Marrafa = Digo marrafa por ser a uma moda mais conhecida na língua em que escrevo na que traduzo.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.
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