domingo, 21 de maio de 2023

Fábio Siqueira do Amaral (O Relógio)

Fato não inédito... mas, verdadeiro 
como os outros que o antecederam...

Fora meu presente de aniversário, isso lá pelos idos de 1986. Jamais parou, nunca atrasou nem um minuto sequer. Rigoroso no horário. Implacável no momento de estrilar sua campainha pela manhã, fazia-me saltar da cama com os olhos ainda semicerrados e a boca toda babada...

Segundo as informações do Vicentinho, naquela tarde – logo após o festivo almoço de comemoração –, o relógio funcionava sem corda e sem pilha... Bastaria agitá-lo por uns momentos, de um lado para o outro, para pô-lo em movimento.     Caso acontecesse esquecer-me dessa norma, e ele cessasse de “trabalhar” – sem problemas! –, que sacudisse mais um pouco o artefato e pronto... Silencioso... Não se ouvia nenhum tic-tac... Se apertasse aquele botãozinho preto, a luzinha azul acenderia e era possível ver o horário no escuro do quarto.

Casei-me, mudei de emprego, deixei minha pacata cidade, meus pais, meus amigos, fui para a Capital e o relógio foi junto, trazendo as lembranças do meu grande amigo.

Por telefone, mantinha contato com o Vicentinho.

Abandonou-me a mulher, quando, pela recessão, fui demitido, e alguns meses depois consegui novo ofício numa pequena firma, ganhando menos da metade do antigo ordenado. Ela levou tudo o que pôde... Só deixou meu relógio.

Vi-me obrigado a sair do ótimo apartamento, meu ninho de felicidade por alguns tempos. Aluguei a minúscula kitchenette com telefone, porém, miseravelmente mobiliada, num prédio decrépito, sujo e maltratado, numa das ruas mais do que vagabunda e mal falada da bela São Paulo.

Meus velhos, por várias cartas, chamaram-me de volta... Vicentinho, eterno amigo prestativo, muito querido, sincero e devotado, exigiu que voltasse... Ele conseguiria melhor ocupação para mim, na empresa dos pais dele.  Agradeci muito, mas não retornaria. Não queria depender nem dever obrigação a ninguém.  

O tempo foi passando. As ligações telefônicas foram rareando de minha parte por contenção de despesas. Vicentinho também deixou de ligar, acreditando, talvez, no meu desinteresse pela nossa antiga amizade. 

Hoje, domingo, acordei antes do toque de despertar com muita saudade desse meu amigo. Uma nostalgia pesava-me, por assim dizer, quase sufocante. Poderia dormir mais, não era dia de trabalho mesmo. Vi pelas frestas da basculante que já raiara o sol. Peguei o relógio. O horário marcava três horas e treze minutos. Fui até a janela e a abri. A claridade ia alta... Eu dormira demais e o relógio estava parado. O relógio de pulso indicava ser quinze para o meio dia... Sacudi o relógio, presente de meu aniversário. Ele não funcionou... Sacudi com força e demoradamente... Nada...

Achei que àquela hora de almoço era apropriada para fazer surpresa ao Vicentinho.

Liguei para ele.

A demora ao atendimento causou-me alguma frustração. Finalmente a voz estranha deu o ar da graça:

— Alô...

— Alô... Quem fala? – perguntei.

— É a Nancy...

A Nancy, prima do Vicentinho.

— Oi, Nancy... Como vai...? Gostaria de falar com o Vicentinho...

— Infelizmente não será possível... Ele morreu nessa madrugada...

— Como?! Morreu?!

— Sim... Na última sexta-feira, Vicentinho sofreu um acidente de carro... Estava internado em estado gravíssimo. Hoje, às três e treze da madrugada, ele deixou de respirar.

Não respondi nada mais, ou, se respondi não me lembro... Desliguei o telefone e chorei como nunca havia chorado por um amigo.

O relógio – recordação do Vicentinho –, cristalizado naquele fatídico horário – 3h13min – nunca mais voltou a funcionar.

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