“Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.”
Julio Cortázar, Casa tomada.
Cansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam diante de um bar. Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto.
O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até a tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes.
Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as ideias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo.
Por um instante Irene esqueceu de si mesma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas ideias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de ideias. A única ideia daquela noite deveria levá-los de volta à sua casa. Sim, a casa lhes pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado?
Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal. “Somos irmãos”. Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro.
Morava sozinho num casarão. Os pais mortos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento não quis nunca. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês.
O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. “Precisamos ir embora, caminhar”. Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. “Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos”. Irene amparou-se no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. “Iremos de carro”. Pior ainda. Não conseguiria dirigir. “Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer”.
O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro.
Súbito o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada.
Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
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