Todas as manhãs, depois de atentamente examinar as vitualhas (víveres) que entravam para as cozinhas reais, o médico do paço descia ao pomar e, vagaroso, abordoado a um bastão, entre fâmulos (serviçais) que levavam alcofas (cestos de vime), ia de uma a outra árvore, indicando as frutas que deviam ser colhidas. Examinava-as, cheirava-as, apalpava-as e só permitia a colheita das que lhe pareciam bem maduras, tão moles que, ao mais leve toque, logo se amalgamassem. Debalde lhe faziam ver que, assim passadas, perdiam toda a beleza e todo o perfume: nem ornavam a mesa, nem convidavam o apetite.
São as que convém ao rei, retrucava o medico.
O encarregado do horto levava-o a ver os pessegueiros carregados de frutos pubecentes (na puberdade), carnudos e corados, cujo aroma rescendia; mostrava-lhe os figos ressumando (vertendo) calda, à volta dos quais era um alegre giro-girar de abelhas; vergava, para que ele os visse de perto, os galhos fartos das laranjeiras e dos limoeiros. Entrando sob as latadas apontava-lhe os cachos piramidais ou, agachando-se nos canteiros, apartava as folhagens expondo os morangos cor de sangue; e o médico sempre a acenar com a cabeça branca: «Que não! Não estavam como convinha. Para que não fizessem mal era necessário mais sol, mais sol e mais orvalho».
E os fâmulos colhiam.
Às vezes, a fruta, de tão madura, esborrachava-se-lhes entre os dedos; outras eram tão chochas (sem suco), tão engrouvinhadas (desgrenhadas) que eles atreviam-se a falar:
— Vede, senhor; reparai. Não é para a mesa de um rei. Dir-se-á que a apanhamos no chão.
— Está como convém, afirmava o velho médico.
E lá ia, sem atentar nas árvores que o atraiam com a beleza e com o aroma dos pomos sazonados.
Uma tarde, sentando-se o rei à mesa e apetecendo-lhe comer figos, pediu-os ao copeiro.
A corbelha (cesto de metal para frutas) em que vieram acamados era de filigrana de ouro, eram, porém, tão feios os berjaçotes (figos de polpa vermelha) que o rei os repeliu de si, com repugnância.
Os pêssegos não lhe agradaram, tampouco as uvas que já se encarquihavam em passas, e tudo mais que da copa lhe traziam em covilhetes (pratinho de louça para doces) preciosos e em condeças (cestas ovais de vime) era devolvido.
Irritou-se o monarca e, atribuindo a culpa ao pomareiro, mandou chamá-lo e, tanto que o viu presente, rompeu em palavras agastadas:
— Para quem guardas tu as boas frutas para que só me mandes as que rejeitam os passarinhos?
— Senhor, a culpa não é minha, senão do médico de V. M. que é quem as escolhe nas árvores. Por mais que eu lhe diga que o fruto deve ser apanhado em tempo — nem tão verde que trave, nem tão maduro que se engelhe, — ele reponta e vai ordenando o que entende. Não me posso insurgir contra quem sabe. Ele é o zelador da saúde preciosa de V. M. e ainda que eu, por muito lidar com frutos, conheça os melhores e saiba quando estão em vez de ser colhidos, calo-me. Frutos não faltam e lindos no pomar, mas que há de responder um pomareiro ao medico d'El-Rei ?
Chamado o médico, que já se havia recolhido à sua quarto, esperou-se longamente que se levantasse e viesse, sempre abordoado, arrastando os passos perros (teimosos) ao longo dos corredores.
Ciente do que se tratava, logo entrincheirou-se na prática, alegando o muito que vira e o muito que aprendera em livros.
— Nada, meu amigo, tornou o rei. Deixemos em paz os livros — todos eles espremidos não chegam a dar duas verdades. Frutos, querem-se de vista e sabor. Nada de figos murchos.
— A prudência, real senhor...
— Conheço-a: é uma senhora que não apaga a lanterna e ainda em pleno dia traze-a acesa porque pode alguma nuvem obscurecer o sol. Dão-na por irmã da sabedoria, essa filha da velhice, no dizer dos velhos. Eu sei. É vezo (costume) servirem aos reis tudo que o Tempo estragou — frutos velhos e homens decrépitos; uns, porque perderam a acidez; outros, porque adquiriram experiência. Assim o que vem à mesa é o repúdio dos passarinhos e o que fala no conselho é a caducidade. Os bons frutos e as inteligências viçosas vegetam no pomar e no mundo até que as gelhas (rugas) os recomendem. Nada, já que os reis são escravos da tradição que, ao menos, os frutos sejam frescos e se o reino não pode crescer com os lanços dos bons espíritos que o paladar do rei não se prive do agradável sabor. Fique cada qual no que entende — o médico, de guarda à saúde e o pomareiro no pomar.
Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J. Feldman
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