domingo, 30 de abril de 2023

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça I

INTRODUÇÃO

Tendo-me ocupado em algumas coisas sérias, nunca me renderam nada. Eu, que sempre fui muito inclinado a traduzir línguas alheias, ainda que, a falar verdade, não sei muito bem a minha, encontrando este manuscrito em poder de um Mouro, que esteve cativo em Argel, e achando os caracteres muito estranhos, porque alguns pareciam-me caranguejos, fui desenganado pelo dito Mouro, mas debaixo de muito segredo, (e o mesmo peço a todos, que este lerem) que era língua piolha, obra anti­quíssima, feita no tempo em que se inventaram as esteiras. E todos sabem que as esteiras é invenção dos Orientais, e que ainda hoje são as suas camas.

Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente se espera esteja descoberta.

Pode-se supor qual seria o meu trabalho a traduzir uma língua que nem por Microscópio se vê e que não tem Dicionário, ainda que no fim desta obra eu darei um à luz, parto de nove meses do meu engenho. Mas, enfim, consegui-o, e estou tão senhor dela, que será muito difícil ao Piolho mais esperto enganar-me. Eu os desafio a todos em campo raso, e sem cabelos.

De toda a obra, o que me deu mais trabalho foi a tradução dos versos que se acham espalhados pelo corpo dela, e que constam de uns amores que teve o Piolho com uma Lêndea, e a paixão que teve por uma rapariga indiana de quinze anos, em cuja cabeça viajou seis meses, e uma Elegia à morte do Piolho, Autor desta obra, feita por um Piolho seu amigo. E é pena que eu não pilhasse mais obras deste Autor, por­quanto lhe achei muita novidade, como lerão os meus Leitores, senão com aquela força que a língua Piolha tem, ao menos com toda aquela que lhe pude pôr. E eu não sou nenhum galego de pau e corda, antes sou bastante débil, por cuja causa peço esta desculpa.

A língua Piolha é toda a mesma, ainda que sejam diferentes as Na­ções, com a única exceção que os Piolhos das Amazonas fazem dos bre­ves, longos. Esta língua não tem nenhuma Ortografia; usa de pevide, como as Galinhas e foi providência isto, pois se falasse tudo o que entendesse, e quisesse, não haveria língua mais impertinente. Quando a ver­dade é guia, a linguagem é a da natureza: tal no Piolho, que escreveu esta História, pela clareza de modo de explicar-se e simplicidade de termos. Seguiu o gênio sem forçar e todos deveriam assim escrever. Creio que tenho dado a clareza que basta para conhecimento da minha tradução e trabalho; e a grande utilidade que tirará em a ler aquele que a ler andar aprendendo; pois como a obra é grande, e de todas as semanas, será muito rude se não ficar sabendo letra redonda, e sem escrúpulo se lhe poderá chamar um redondo...

A murmuração
É quente de Inverno,
Fresca de Verão

CARAPUÇA I (Nascimento, pátria, país e educação do piolho]

Eu nasci lá para a Ásia, de um ajuntamento de uma Piolha e um Elefante, ainda que houve quem dissesse que uma Tarântula macha foi quem me deu o dia. Mas fosse ou não fosse, isso é coisa insignificante; porque como os Piolhos não têm morgados que herdar, as Piolhas têm pouco escrúpulo de que seja este ou aquele o Pai de seus filhos, ainda que não deixe de haver muitas Piolhas escrupulosas e com muitos bons sentimentos. Seja ou não seja, meu Pai desconfiou muito de eu não ser seu filho, o que não deu poucos cuidados à minha mãe, e talvez fosse a origem da sua morte. Mas é certo que ele não teve razão nenhuma, pois minha mãe me certificou, depois dele morrer, que ela não tivera dares nem tomares com outro algum indivíduo.

Nasci fora de tempo e minha mãe esteve em perigo de vida a meu respeito, porquanto eu saí, ainda que Piolho, bastante grande e largo, que muitas vezes me tomaram por Percevejo. Saí todo à minha mãe, principalmente nos olhos, no andar e no acionado.

A minha cor é cinzento-escura. Educaram-me logo à chuchadeira da cabeça, que a do corpo é só para os veteranos. Não cheguei a mamar vinte minutos. Aos cinco dias de nascido fui atacado de moléstia de olhos; abriram-me uma fonte numa das pernas esquerdas e, com efeito, melhorei, que hoje vejo quanto me basta.

Minha mãe quis que eu aprendesse línguas. Mas meu pai, que era Piolho prudente, não consentiu, dizendo que, enquanto não soubesse perfeitamente a minha, os costumes da minha casta, a obediência que se lhe devia, não queria me embrulhar em mais coisas, para no fim ficar um toleirão, sem nada saber. Ele era áspero de gênio e eu não era muito seu apaixonado. Nunca lhe vi um ar de riso para mim. Jamais me tratou por tu, sempre era um Vossemecê para aqui, Vossemecê para acolá. De forma que eu não só tinha respeito, mas medo.

O Piolho que me ensinava a falar e a morder, não desgostava de minha mãe e ela também não lhe envesgava os olhos. Punha-lhes direitos. Eu pouco aprendia, porque o meu pai nunca queria assistir à lição, dizendo que, quando o Mestre estava com o Discípulo, nem o mesmo pai tinha poder no filho. O Mestre aproveitava-se do tempo e, em vez de me ensinar a mim, ensinava a minha mãe, que era só com quem falava. E havia lição que nem uma só palavra me dizia, do que pouco se me dava porque entretinha o tempo em me balouçar nos cabelos, divertimento de que sempre gostei muito. Meu pai foi percebendo que eu era uma besta e que não aprendia nada. Chamou-me a parte e pediu-me conta dos meus afazeres. Eu tinha pouca malícia e muito amor ao corpo. Contei-lhe do plano a quem o Mestre dava as lições. Ele disfarçou, pôs-me uma das mãos na cara, deu-me um beijo e foi esta a primeira e única vez que lhe vi e mereci um agrado. No outro dia chegou o Mestre, que morava ali perto (nós morávamos na cova-do-ladrão e ele atrás de uma orelha) e meu pai despediu-o com toda a cortesia. Mas ele, não contente, entrou às satisfações, dize-tu-direi-eu, e chegaram a braços. Neste tempo, o dono da cabeça em que nós morávamos, sentiu rumor mais do que costumado e, de um golpe, acertou com ambos, que estavam encangalhados e juntos morreram debaixo da unha, aonde, por costume, nós somos justiçados pelos nossos delitos. Se é que é delito o procurarmos simplesmente o nosso sustento. Pois que nós não tiramos o sangue a ninguém para andar em sege nem sustentar vícios.

Minha mãe, cheia de aflição, e vendo em mim a causa da sua desgraça, além de eu já estar bastante robusto e fazendo bem por viver, pôs-me à vida, dando-me alguns conselhos e um abraço, de que lhe fiquei muito obrigado, porque entre nós há Pais que nem isto dão. Ela assistia, ao tempo da minha retirada, na cabeça de um Procurador de Causas, a cuja cabeça eu fui alguns anos depois da sua morte. Esqueci-me de dizer que eu me chamo - X - apesar de não ser queijo Inglês; porquanto o nome de Piolho é o geral, assim como o de Homem, mas cada indivíduo tem o seu nome particular.

A primeira cabeça onde pus o pé e o dente, foi a de um Tinhoso, e contar o modo como fui ter a ela, seria enfadar os Leitores. Basta que fiquem sabendo que fui. Se os Piolhos tivessem Retórica, assim como têm Filosofia, com que elegância e finuras eu não pintaria a minha aflição, ao ver-me num sítio tão despovoado, sem Pai nem Mãe, nem aderente, nem cabelos, sem segurança alguma, em risco de ser apanhado e visto. Mas oxalá que eu nunca dali tivera saído. Não há trabalho sem refúgio. Este Tinhoso benfeitor tinha a maior bazófia em dizer que tinha piolhos, por isso mesmo que não tinha cabelos. Quantas e quantas vezes me pôs ele o dedo em cima e, deixando-me fugir, dizia: Escapou-me por um triz; é incrível os piolhos que tenho. Ao princípio assustava-me. Mas depois, conhecendo-lhe a balda, dormia e chuchava a sono solto.

Dividi a cabeça em diferentes passeios, mas atrás das orelhas e a cova-do-ladrão eram o meu forte. Também me divertia pelo colarinho da camisa, quando a tinha lavada, mas poucas vezes. Na cova-do-ladrão era onde lhe ferrava mais a miúdo, principalmente de noite, porque, como ele dormia de costas enquanto levantava a cabeça para se coçar, escapulia eu, porque receava que, com o sono, me não guardasse o respeito que me guardava acordado. Passados dias, entrou o Tinhoso na tentativa de criar cabelo, para o que untava a cabeça com um chorume que me sabia como gaitas e nunca me vi tão rechonchudo. Porém, as unturas tais dores lhe motivaram que largou o remédio e pôs cabeleira. E daqui se originou a desgraça de eu passar a outra cabeça, como adiante direi.

A ocupação do meu Tinhoso era fazer e vender mechas, no que lucrava no seu tanto muito suficientemente para ele e para uma Tinhosa que tinha em casa. Que eu, já se sabe do que vivia. Uma das coisas mais galantes é, quando eles se catavam mutuamente, safar-me eu para o colarinho a ver touros de palanque. E tive tanta cautela que nunca me pôs os olhos em cima. Porque à tal minha senhora não lhe escapava nada, nem a mesma vizinhança. Era tão viva que sabia quantos piolhos tinha cada cabeça, e, se algum dia acertasse comigo, seria sacrificado no altar das suas unhas que as tinha grandes por todos os modos. Ele era um bom homem, à exceção de se embebedar, botar pouco enxofre nas mechas, cortá-las delgadas, sacar três em cada molhinho, safar algumas bagatelas nas casas aonde o chamavam e outras coisas deste mesmo lote. Era tão bom homem que uma vez levou um amigo à casinha por amor de meio tostão que lhe devia. Fez-lhe, já se sabe, pagar a diligência e ficava amigo como dantes. O outro foi que não quis.

A mulher criava galinhas e era tão viva que, não tendo galo, botava os ovos e sempre tirava pintos. Fazia coisas por aí além; até sabia nadar. Num dia de S. Martinho entra a mulher a meter na cabeça ao marido que mandasse pentear a cabeleira. Como era dia em que havia muitas, resolveu-se a mandar a que tinha na cabeça e era a primeira vez que tal lhe sucedia. Na ocasião em que ele mesmo a levou a casa do cabe­leireiro, sucedeu eu dormir e estar agasalhado entre a coifa e o cabelo, lugar que eu tinha escolhido para o descanso desde que ele a usava. Quando acordei, senti-me sem calor, saí da toca e qual seria a minha admiração quando me vi na cabeça de pau? Fiquei aflitíssimo e até, para maior desgraça, esse dia e noite fiquei empaulado. Mas no outro, apenas o cabeleireiro lhe pôs o pente, deixei-me cair na manga da casaca e, em duas palhetadas, me pus na cabeça do dito, da qual contarei o sucedido na Carapuça II.
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António Manuel Policarpo da Silva (Lisboa/Portugal, 1790 – 1819). Pouco se tem sobre ele, era homem liberal e de convicções constitucionalistas, como se pode ajuizar de outro manuscrito que propôs à Censura, o Manifesto dos Espanhóis aos Povos da Andaluzia. Foi livreiro e editor com loja permanente, e por muitos anos, desde o início do século XIX, no Terreiro do Paço, debaixo da arcada da Câmara Municipal, que então ocupava um dos edifícios onde hoje estão instalados alguns Ministérios. Melhor pois não o poderia ter para captar todo o pitoresco da cidade e para conhecer as tricas da cabala literária. Em 1819, quando anos já levava a edição de O Piolho, publicou outra obra, sempre sob o disfarce de tradução de um anónimo, as Leituras Úteis e Divertidas Traduzidas em Vulgar, em 4 volumes ilustrados. Muito menos audaz do que O Piolho Viajante e de menor sucesso público, revela, porém, os mesmos dotes satíricos e a agudeza de espirito que deixara nas 72 carapuças por onde fez viajar o piolho. Editou ainda uma publicação periódica, as Variedades, de que foi único redator D. António da Visitação Freire de Carvalho. 

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

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