sexta-feira, 14 de abril de 2023

Coelho Neto (O Tempo)

Querendo o príncipe oferecer ao templo uma imagem de Apolo digna do edifício grandioso que 
mandara construir para honrar a divindade esplêndida e levar, pelos séculos vindouros, a fama da sua grandeza, convocou os mais celebres estatuários do reino para uma conferência em palácio.

Apresentaram-se três artistas, dos quais um deles seria nomeado.

Disse-lhes o príncipe o que pretendia, ajuntando, com largueza, que não fazia questão de preço e que pedissem tudo quanto julgassem necessário à boa execução da obra de arte, que devia ser bela e solidamente feita para que deslumbrasse e resistisse aos séculos.

– Senhor, disse o primeiro estatuário, dai-me ouro e eu vos trarei uma estátua tão bela que, no dia em que for instalada no templo, os homens da terra terão a ilusão de estar contemplando o próprio condutor do carro do sol.

E o príncipe ordenou que se cumprisse a vontade do artista.

— Senhor, disse o segundo estatuário — farei de prata o corpo, farei de ouro as vestes e cobri-las-ei de pedras preciosas. Será tão formosa a imagem que os deuses baixarão do Olimpo para contemplá-la, e, de pé, no altar do templo, dispensará a luz do sol e a claridade das lâmpadas porque os raios que emitir iluminarão gloriosamente o recinto.

E o príncipe ordenou que fosse satisfeito o desejo do artista.

Foi a vez do terceiro estatuário. Era um velho, de barbas brancas, tão longas que lhe chegavam à cintura. Caminhava lentamente e, curvando-se ante o príncipe, falou com respeito e modéstia :

— Senhor, dai-me um bloco de mármore puro e tempo para que eu nele trabalhe e procurarei fazer o máximo que a um homem é dado fazer.

Puseram-se os três escultores com o que haviam pedido e, em todo o reino não se falou, durante meses, em outro assunto senão no concurso chamado “divino”.

Ainda ia em meio o primeiro ano quando o artista que pedira ouro apareceu orgulhosamente na corte com o seu Apolo.

Foi um acontecimento e não faltou quem louvasse a grande atividade do modelador. Descoberta a figura, pasmaram os assistentes. A imagem irradiava como o próprio sol. Mas um perito, adiantando-se à turba, pôs-se a mostrar defeitos que muito comprometiam o trabalho e outras vozes criticaram: uma a expressão, outra a atitude; esta notava a falta de majestade; aquela as desproporções.

— Vale porque é de ouro, disse por fim o perito.

E o príncipe, desgostoso, mandou fundir em moedas a estátua que fora destinada a adoração dos crentes.

Pouco tempo depois anunciou-se o segundo estatuário.

Ainda que o seu trabalho revelasse maior esmero não o acharam, todavia, digno de ocupar o solo em que devia ser erigida a imagem olímpica.

— É bela e é rica, refulgente, mas falta-lhe majestade! É uma linda figura humana e nós queremos um deus.

E a estátua de prata e ouro, com recamos de pedrarias, ficou ornando uma das salas do palácio.

Do terceiro estatuário não havia notícia e já corriam murmúrios irónicos, boquejos de menoscabo : “Desistiu da empresa. Era velho demais para trabalho que exige inspiração viçosa. Anda, sem dúvida, a fazer figurinhas, como as de Tanagra, para vendê-las aos forasteiros.”

Uma manhã, porém, para surpresa de todos, apareceu o velho no palácio com o seu “deus” envolto em panos de linho.

Ainda que ninguém confiasse no seu trabalho, juntaram-se todos os cortesãos no palácio, só por subserviência ao príncipe, e os serviçais descobriram a imagem. Houve um movimento de espanto.

Maravilhados, embevecidos quedaram todos contemplando a figura olímpica, Apolo, o magnífico — que, de pé sobre nuvens, a cabeça aureolada de raio, o olhar sublime, parecia dominar serenamente os homens.

— Este sim ! Este é Apolo augusto ! bradaram. Este é o deus solar, dominador da altura. 

Descendo do trono, o príncipe felicitou o artista e, depois de o haver engrandecido com palavras de louvor, perguntou :

— A que deus pediste a graça de tão formosa inspiração ?

— Ao Tempo, senhor. Outros exigiram metais e pedras preciosas, a mim bastou o mármore puro. Para enriquecê-lo eu contava com o Tempo. Se, para uma curta viagem, são necessárias muitas horas como havemos de afrontar os séculos de afogadilho?

A inspiração é a flor do gênio, mas não exijamos que ela dê fruto saboroso logo que desabroche. É preciso deixar que o Tempo faça o seu oficio. Se um deus me patrocinou foi a Paciência ; se um demônio comprometeu a obra dos que me precederam, foi a Pressa. Senhor, os séculos são longos e quem se destina a atravessá-los deve ir devagar. Quereis saber como se consegue a Eternidade ? Com o Tempo.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924. 

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