Paira no ambíguo destinar-se
Entre longínquos precipícios,
A ânsia de dar-se preste a dar-se
Na sombra vaga entre suplícios,
Roda dolente do parar-se
Para, velados sacrifícios,
Não ter terraços sobre errar-se
Nem ilusões com interstícios,
Tudo velado, e o ócio a ter-se
De leque em leque, a aragem fina
Com consciência de perder-se...
Tamanha a flama e pequenina
Pensar na mágoa japonesa
Que ilude as sortes da Certeza.
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“PAISAGENS, QUERO-AS COMIGO”
Paisagens, quero-as comigo.
Paisagens, quadros que são...
Ondular louro do trigo,
Faróis de sóis que sigo,
Céu mau, juncos, solidão...
Umas pela mão de Deus,
Outras pelas mãos das fadas,
Outras por acasos meus,
Outras por lembranças dadas...
Paisagens... Recordações,
Porque até o que se vê
Com primeiras impressões
Algures foi o que é,
No ciclo das sensações.
Paisagens... Enfim, o teor
Da que está aqui é a rua
Onde ao sol bom do torpor
Que na alma se me insinua
Não vejo nada melhor.
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“PÁLIDA, A LUA PERMANECE”
Pálida, a Lua permanece
No céu que o Sol vai invadir.
Ah, nada interessante esquece.
Saber, pensar - tudo é existir.
Mas pudesse o meu coração
Saber à tona do que eu sou
Que existe sempre a sensação
Ainda quando ela acabou…
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“PÁLIDA SOMBRA ESVOAÇA”
Pálida sombra esvoaça
Como só fingindo ser
Por entre o vento que passa
E altas nuvens a correr.
Mal se sabe se existiu,
Se foi erro tê-la visto,
Sombra de sombra fluiu
Entre tudo de onde disto.
Nem me resta uma memória.
É como se alguém confuso
Se não lembrasse da história.
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“PARECE ÀS VEZES QUE DESPERTO”
Parece às vezes que desperto
E me pergunto o que vivi;
Fui claro, fui real, é certo,
Mas como é que cheguei aqui?
A bebedeira às vezes dá
Uma assombrosa lucidez
Em que como outro a gente está.
Estive ébrio sem beber talvez.
E de aí, se pensar, o mundo
Não será feito só de gente
No fundo cheia de este fundo
De existir clara e ebriamente?
Entendo, como um carrossel;
Giro em meu torno sem me achar...
(Vou escrever isto num papel
Para ninguém me acreditar...)
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“O PESO DE HAVER O MUNDO”
Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.
Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?
Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar.
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“PASSAVA EU NA ESTRADA PENSANDO IMPRECISO”
Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.
Bem sei, bem sei, sorrirá assim
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu querer?
Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Vou sem ser nem prazo...
Que ao menos na estrada me sorria alguém
Ainda que por acaso.
Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).
Poesias em Domínio Público
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