domingo, 2 de abril de 2023

Carolina Ramos (Saudade)

Era o seu encanto aquele neto. Também, o único. E, como tal, soberano absoluto daquele coração cansado.

Morrera cedo a mãe do menino. Ela o criara.

O rosto encarquilhado da velhinha parecia alisar-se de gozo, cada vez que o netinho o tomava entre as mãos, e, a cobri-lo de beijos, segredava-lhe ao ouvido; - "Sabe, vovó, você é a vó mais linda que eu conheço, e é por isso que eu gosto tanto, tanto de você!"

Um dia ... bem, um certo dia, o crupe chegou. Ou difteria, como querem os entendidos. Chegou e agarrou o garoto de surpresa, e não o largou mais. Com suas garras de ferro, estreitou-lhe a gargantinha, pouco a pouco, como a tentar estrangular-lhe a alma!

Ante a tragédia iminente, a velhinha ganhou ânimo de leoa! Cresceu! Avantajou-se! Criou vigor de moça, na luta contra o inimigo implacável!

Com a energia que o desespero concede! Com a clarividência e a coragem que a própria dor empresta!

Tudo inútil! O médico rasgou de um golpe a traqueia obstruída.

A morte ganhou a corrida. E, em vez da golfada salvadora, foi ela quem primeiro atravessou a porta de emergência ...

Olhos esbugalhados de horror, a velhinha sentiu pesar-lhe nos braços o corpo frouxo do neto.

Não chorou uma lágrima sequer. Também, nunca mais sorriu.

Daí para frente, foi ficando cada vez mais pequenina. As costas encurvadas de tanto olhar o chão. Para que olhar à volta, se, para ela não havia mais horizontes?! As mãos sempre frias, trêmulas e côncavas, num desejo mórbido de, antecipadamente, cruzarem-se sobre o peito. Os pés, mais e mais pesados, como a deitar raízes, sempre que parados.

Pela mesma porta em que saíra o caixãozinho branco enfeitado de flores, saiu, não muito depois, um ataúde roxo, quase tão roxo quanto as olheiras e a saudade da velhinha.

Muitos choravam ainda, quando a cova escura engoliu a última flor. Contudo, quem atentasse para a música da brisa, que brincava de fazer dançar o corpo esguio dos ciprestes, teria ouvido, entre risos cristalinos, uma voz meiga de criança que indagava perplexa:

- "E por que choram, vózinha?l Você estava morta ... agora, ressuscitou !..."

E aqueles, cujo privilégio de enxergar além da matéria o permitia, puderam vislumbrar o vulto de duas crianças felizes, uma de cinco anos e outra de quase oitenta, caminhando, mãos dadas, rumo ao sempre.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

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