MINHAS MÃOS AMANHECIDAS vieram lavar meu rosto de saudade. Nesse instante, o destino ingrato parece dar uma pausa. Uma delonga mínima, onde tudo está na mais profunda calma e mansidão. Qual o quê! Tudo em derredor não vai além de uma impressão passageira. Na verdade, minha alma está poluída, congestionada de tantas sujeiras. Impurezas, frutos de um bocado de estercos deixados pela sórdida tristeza que habita em meu ser. Igualmente da agonia escárnia que não me deixa. Não me resta outra saída, pelo menos nesse momento crucial, senão chorar.
Me debulhar em lágrimas sentidas como uma criança que se perdeu dos pais em meio de uma multidão de estranhos. Tento extravasar os momentos cruciantes que me tolhem a vontade de respirar, de continuar vivendo, de ser um pouco feliz. O meu coração está preso a correntes fortes, como também minha alma. Ambos não se movimentam nem para um lado, nem para outro. Somente a procissão das lágrimas caminhantes conseguem me libertar das amarras fortes que me prendem e propiciam um pouco de sossego, um bocadinho da paz que realmente mereço. Contudo, apesar dos pesares, embora continue com o peito despedaçado, consigo vislumbrar uma tênue luz no fim do túnel.
Sinto que do céu se esvaem pingos de ternura. À medida que caem, escorrem paralelo ao furacão desenfreado que flui do recôndito do meu “eu” interior. Nessa confusão desordenada, apenas sou um pedaço perdido de mim. Resíduos de um amor fracassado, de um caminho interrompido, de um amanhã que não nasceu. Me sinto uma coisa fútil, banal. Me vejo como restos desfalecidos de um corpo sem vida. No fundo, me assemelho a destroços de uma existência inteira jogada à mercê de fortes temporais. Olho para o infinito distante e procuro alguma brecha lá em cima. Uma lacuna-escape, onde possa enfiar minha tristeza e conversar um pouco com Deus.
Ensaio uma prece: Oro baixinho: “Ó Pai Eterno, venha em meu socorro! Sem sua presença em minha vida o que será de mim? Não sei de nada. Nem mesmo do que me espera, se é que alguma coisa me aguarda. Se abre, diante de minha estrada, um futuro incerto. O caminho percorrido até este momento, me fechou todas as passagens. A única ponte que poderia me devolver ao passado, ficou tão longínqua que mal consigo enxergar a trilha de regresso”.
De repente, do nada, uma luz – uma luz no fim do túnel (embora ofuscada por densas nuvens negras), me dá um pouco de alento. Afinal de contas, minhas mãos amanhecidas continuam lavando meu rosto entristecido. No fundo, queria retirar da face, o sol sem brilho que me asfixia.
Quem me dera arrancar de uma vez por todas o meu olhar perdido. Bem ainda afastar a visão deformada das coisas que me cercam. Como seria gratificante espantar para bem longe os fragmentos de sonhos mal sonhados... abraçar as empolgações que encontrei há muito tempo atrás, numa quimera de esquecimento? Sei que tudo o que restou de mim está aqui. Do que fui, também está aqui. Do que construí está aqui. Do que terminou, do que sou agora, tudo, tudo jaz aqui. Será que atinei com a descoberta de algo importante? Difícil dizer! Tenho consciência de que meu tempo acabou. É por isso que cansei de caminhar por estradas de agonia, buscando em cada cidade por onde passei, um coração solitário, como o meu, que me desse pousada.
Quisera encontrar uma mão amiga que me estendesse e me abrigasse com aconchego, amor, carinho, sobretudo, que me reconstruísse... meu tempo, realmente acabou. De onde estou agora, daria tudo de mim para voltar a bolinar no fiozinho do destino. Abriria mão dos dias que ainda me restam para sobreviver a essa jornada longa, cansativa e maçante que me atropela os dias, notadamente aqueles que me foram levados pelos momentos de solidão. Enfim, continuo vencido. Tenho, pois, que tirar do rosto –, preciso arrancar do meu rosto, essas mãos amanhecidas –, esconder no caderno do passado a vida desfeita em cinzas. Urgentemente fazer rebrilhar no olhar, a ilusão de um novo dia de sol e de esperanças.
Tenho que prosseguir e progredir. Topar com alguma coisa que garanta a minha permanência nessa terra cansada de sofrer junto comigo as intempéries e as preocupações com um porvir desfeito, soterrado, desmoronado... careço, urgentemente regressar ao viver. Contudo, compreendo, meu tempo acabou. Apesar disso, positivo voltar a sorrir, a cantar, a amar, a ser feliz e alegre. Apesar desse quadro desolador, do tempo ter se escasseado, apesar dessa tristeza mesquinha... alimento a convicção e a certeza de estar construindo algo sólido e maciço. Algo realmente inquebrável e talvez até imutável. Me entojei desse olhar não aderente ao brilho das boas coisas da vida.
Me amofinei dessa solidão apática que teima e me persegue. Meu tempo acabou, mas estou vivo, e como tal, sonho coisas lindas. Não com castelos de areia, ou sereias encantadas. Não quero um mundo de ilusões deformadas pelas torpezas do espaço que agora me esmaga. Nada disso me fará feliz. Sonho com um amanhã menos cruel e opressivo. Farejo dias de sol, sem ventos fortes. Profetizo, enfim, com a liberdade de ser eu mesmo. Sem ninguém para tolher os caminhos, as sendas a serem seguidas. Engendro mais: romantizo coisas palpáveis, ainda que difíceis para conseguir, jamais perderei o foco. Meu tempo acabou. Apesar dele ter findado, não desistirei de alcançar tudo o que almejei, e, se necessário for, aplicarei uma boa dose de perseverança e amor em minha alma. Beberei um cálice de vontade férrea, para enfrentar as lutas e as pelejas que surgirem. Quero me esquecer no tempo. Fluir como as águas de um rio imenso e desembocar no mar.
O mar, para mim, significa transpor o túnel que tenho à frente. Chegar do outro lado. Mesmo sabendo que meu tempo acabou. Mesmo tendo consciência que minhas mãos amanhecidas vieram lavar meu rosto de saudade. Ainda assim, e, sobretudo, haverei de plantar no útero da vida, a semente de um ser vivente. Um ente que desabroche para o mundo. Como as flores de um jardim se abrindo para encantar a natureza. Estou retirando do meu rosto as mãos amanhecidas. Essas, cuja via sacra é uma espécie de relicário de recordações. Reminiscências que não devem, jamais, despertar do sono eterno que vislumbro para elas. Picuinhas do meu passado tristonho e melancólico. Fragmentos que residem dentro de mim: mazelas que devem ficar, para sempre, sepultadas desse lado do túnel.
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