A sra. d. Joaquina era uma dessas impagáveis solteironas, que vivem sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente zombeteiras dos moços que fingem corteja-las por distração.
Tinha ela a tez, — enrugada e mole como a casca do jenipapo maduro, — salpicada dessas manchas amarelas a que chamam sardas; encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz, comprado sempre na Loja Mariposa, da qual o co-proprietário Affonso, — o simpático Affonso, — vendia-lhe com muita dose de reclames e chamadas de atenção para a superioridade da fazenda.
Usava uns vestidos fora da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos quais primavam os enfeites vistosos, — uma garridice da sra. d. Joaquina.
O rosto dela denunciava 45 anos bem seguros entre os refegos* da engelhada (enrugada) epiderme, — posto que os cabelos, pretos e lustrosos como a cara suada de um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos idade.
As pessoas que viviam mais intimamente com ela murmuravam frases pouco lisonjeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentável e digna do direito de aspirar a um bom casamento" — como ela pensava e dizia mui confidencialmente a certas amigas particulares.
Sempre houve maledicentes no mundo (salve a chapa!): foi por isso que uma dessas amigas, tendo tido uma altercação com ela, retirou-se de seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a notícia de que a nossa personagem pintava os cabelos que, se não recebessem cotidianamente os respectivos afagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar sofrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou, supôs equivaler aquela afirmativa a uma intriga motivada pela recente inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.
A sra. d. Joaquina possuía uma educação medíocre, apenas suficiente para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto à educação moral; quanto à intelectual, lia com desembaraço e alguns tropeços prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou três namorados que tivera antigamente.
Eram essas leituras um desopilativo (divertido) benéfico para o seu “spleen*” de senhora entrada em anos e voltada à lastimosa condição de tia. Ai! A pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade casado com o Guedes, o ferrageiro (negociante de ferragens) abastado, que se apaixonara loucamente por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade, escudavam-se em uns vinte e dois anos de existência. Ela não aceitara o amor dele, sonhando desposar um jovem barão, muito rico e elegante, como um que conhecera num romance do insípido Ponson du Terrail. O barão, porém, nunca apareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o Guedes, em um momento de lúcida reflexão, resolvera viver em calmo e econômico celibato, apenas conservando em casa a Belisária, cozinheira, mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe afagos cheios de faceiros quindins, nas horas de amor, e boas tortas de camarões seguidas de compotas de delicioso bacuri, à sobremesa.
Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jamais tivera informações exatas, depois que por espontânea vontade os desenganara. Dizia-se vagamente que um fora negociar ao rio Madeira, de onde nunca regressou, talvez pela sedução de alguma iara encantadora. Do outro constava apenas que partira para seu país natal, — Portugal — afim de ir saborear à lareira, nos longos serões de inverno, — quando o suão* sibila nas grandes chaminés enegrecidas, — os suculentos nacos de paios da Beira, — daqueles paios tão glutonamente decantados pelo ilustre poeta João Penha.
Por essa arte, achava-se a sra. d. Joaquina disponível, e a dizermos tudo, deveremos acrescentar que alimentava agora umas secretas e dulçurosas esperanças de cativar o rebelde coração do Francisco da Natividade, o elegante dono de uma das melhores lojas da rua dos Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções, porquanto ouvia-lhe os suspiros langorosos sem estremecer, sem pestanejar, sequer, em uma impassibilidade de múmia. Ela armava-lhe ratoeiras amorosas: mandava-lhe flores, fazia-lhe presentes de toalhas de labirinto e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando ele ia à casa da família dela, chegava-lhe fósforos acesos aos charutos, roçando os dedos nos dele, para silenciosamente lhe revelar a sua paixão.
Contudo, nada o comovia, e a sra. d. Joaquina rebelava-se intimamente contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria rede de velha virgem, passava em revista pela memória todos os seus atos relativos ao bom andamento daquele amor.
Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.
A fina amabilidade do jovem lisboeta, de uma elegância tão natural, atraiu as boas graças da digna solteirona, que logo simpatizou com ele. Em menos de um mês o Raul tinha na sra. d. Joaquina uma amiga sincera, uma atenciosa admiradora do "seu caráter austero."
Ele, para retribuir-lhe as afabilidades, redobrava de cumprimentos, desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.
Levada pelas erupções daquele seu coração vulcânico, ela começou a amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o Francisco da Natividade. Cedo surpreendeu o bom moço as amorosas manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessário, inteirou o parente sobre o afeto dela, para obedecer aos ditames do dever. Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisória senhora.
—
Ou porque trouxesse de Lisboa os germes de uma bronquite, ou porque, já no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pálido, perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma sufocação, seguida de agudas dores na parte interna do tórax, as quais comunicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir, curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expeliu um pouco de sangue vivo.
— Santo Deus, que vejo?! — exclamou o tio, assustado. — Já, um medico, depressa! continuou, a correr atônito pela sala....
O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou três recomendações sobre o tratamento.
Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém, teve uma verdadeira e forte hemóptise*. Lá foi o moleque chamar novamente o doutor.
Depois de ausculta-lo, e interrogar sobre a vida passada e climas em que habitara, o médico aconselhou-o a partir para Portugal assim que pudesse. Assoberbado por tão assustadora recomendação, o bondoso Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete que do Pará saiu seis dias depois.
No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando verdadeiras lágrimas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:
— Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!
— Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!
Chegando á cidade do Tejo, estava Raul em um auspicioso pé de restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado, resguardando-se de tudo quanto pudesse fazer-lhe mal. Estes úteis entretenimentos levaram-no a esquecer-se da sra. d. Joaquina.
—
Passaram os meses. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os médicos lhe recomendassem que não viesse ao Brasil, tratou de procurar emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradável. Fez-se caixeiro viajante de uma conceituada casa comercial, para ir fazer cobranças pelas províncias.
Na véspera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão, — ao Alentejo, — estava ele arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão no bolso de um paletó que só vestia em viagem, encontraram seus dedos um objeto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe dera a sra. d. Joaquina.
— Ah! que esquecimento o meu! — exclamou. — Que juízo não terá feito a meu respeito a impagável senhora....
E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescrito.
"Meu bom amigo, — leu. — Devo dizer-lhe uma coisa, que há muito aflue-me aos lábios, sem todavia sentir-me com ânimo de faze-lo: amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração! (Isto copiou ela do romance A Caridade Cristã, de Escrich, — pensou Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se fui por si acolhido o meu amor. (Aquele fui é que era genuinamente dela, só dela; o Raul bem o conheceu). Espero ansiosa a sua resposta, com a qual o meu amigo remeter-me-á meia dúzia de água circassiana, para eu dar de presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua eternamente, — JOAQUINA."
Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura daquele modelo de ortografia, propriedade de termos e sintaxe; mas, logo fez-se mais sério e:
— Ora bolas! — disse. — Só os cabelos encantavam-me, por serem tão pretos e lustrosos... E era falsa aquela cor de azeviche!... Que desilusão!…
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* Vocabulário:
Refegos = dobras em pessoas gordas.
Spleen = baço, segundo os gregos caracterizava sentimentos relacionados ao "pessimismo, ceticismo e um irresistível tédio.
Suão = diz-se de ou vento quente de sul e/ou de sudeste.
Hemóptise = é a eliminação de sangue do trato respiratório pela tosse.
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João Marques de Carvalho (1866-1910), escritor, diplomata e jornalista, Fundador da Academia Paraense de Letras. Foi um dos poucos escritores a conseguir na Amazônia paraense publicar uma produção literária tanto em periódicos quanto em volumes, a exemplo de poemas, contos e romances. Em prefácios de livros e publicações periódicas de naturezas diversas, o escritor paraense levantou com entusiasmo e veemência a bandeira do Naturalismo, estilo literário considerado excessivamente realista e cru, que adotou, defendeu e cultivou ao longo da carreira. Dessa maneira, Marques de Carvalho colocou- se na contracorrente da produção literária cultivada na província do Pará, pois a maioria dos colegas de ofício radicados na Belém oitocentista se demonstrava mais afeita ao Romantismo.
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889. Disponível na Wikipedia. https://pt.wikisource.org/wiki/Contos_paraenses/Desillus%C3%A3o. Acesso em 21.04.2023. Convertido para o português atual por J. Feldman.
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