Viúvo da Razão, que havia morrido no hospício, abandonou o coração, um dia, a sua fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral, em sua companhia, afim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas. Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens - o Amor, o Pudor e o Orgulho, e seis mulheres - a Fé, a Esperança, a Amizade, a Coragem, a Caridade e a Hipocrisia.
Chefe de família descuidado, o Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar solidamente as portas da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e rigorosa. Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas, gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa liberalidade paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de casa, atentando contra os bons costumes, com grande escândalo do ancião, que nunca pensara, em sua vida, em semelhante vergonha para sua velhice.
Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o velho remediar o mal, regressando, com a família, para as suas propriedades, no alto sertão. E na hora da partida, reuniu os filhos, chamando-os, um por um:
- Esperança?
- Pronto! - respondeu a moça.
- Coragem?
- Presente!
- Amor?
- Presente!
E assim chamou, obtendo resposta, e metendo-os no trem, a Fé, a Amizade, a Caridade e o Pudor. Chegada, porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:
- Orgulho?
Ninguém respondeu.
- Hipocrisia?
O mesmo silêncio. Aflito, o pobre pai procurou-os em torno, chamando-os aos gritos. E foi debalde. Nesse instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião correu, e tomou o carro.
Momentos depois o trem partia, levando para o interior do país a Esperança, a Amizade, o Amor, a Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade, apenas, o Orgulho e a Hipocrisia.
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
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