sexta-feira, 7 de abril de 2023

Hans Christian Andersen (A Criança e o Túmulo)

 
A casa estava coberta de luto, e nos corações reinava o pesar. O filho menor, um menino de quatro anos, a alegria e a esperança dos pais acabava de expirar.

É certo que ainda ficavam ao casal duas filhas, das quais a mais velha já ia ser confirmada; e que eram ambas meninas excelentes e bem-educadas. Mas o filho que se perde é sempre o mais querido, e além disso aquele era o menor - e um varão! Era uma provocação cruel.

As irmãs estavam tristes; e o desgosto dos pais ainda mais as comovia. O pai sofria grande abalo, mas a mãe, essa, achava-se completamente prostrada pela imensa dor.

Dia e noite tratara a criança doente, cuidara dela, andara com ela nos braços; sentira que aquele filhinho representava uma parte tão grande de si própria! Não podia compreender aquilo - que ele morrera, que ia ser posto num caixão, e repousar no túmulo... Entendia que  Deus não podia tirar-lhe aquele filho e, quando verificou que assim era na verdade, quando não lhe restou mas nenhuma dúvida, disse, na sua dor cruciante:

- Oh! É que Deus não sabe disso! É que ele tem aqui na terra servidores desalmados, que fazem as coisas à sua vontade, e não ouvem as preces de uma mãe!

Na sua grande dor ela se afastou de Deus. Vieram-lhe pensamentos sombrios, os pensamentos da morte, da morte eterna; ideias de que o homem é terra na terra, e que com ele tudo se acaba. E com semelhantes pensamentos, não achava apoio algum, não encontrava nada a que se amparar, e caiu no abismo do desespero.

Nos momentos  mais tristes, já não podia chorar. Não pensava nas meninas, nas filhas que lhe restavam. As lágrimas do marido caíam-lhe na fronte, mas a desditosa mãe nem olhava para ele. Todos os seus pensamentos estavam com o filho morto; todo o seu ser, toda a sua existência não tinha outro objetivo senão evocar as recordações da criança, ressuscitar cada um dos seus inocente ditos infantis.

Chegou a hora do enterro. A mãe passara as noites anteriores sem sono, mas naquela madrugada adormeceu por alguns instantes, dominada pelo cansaço. E foi nesse intervalo que levaram o caixão para uma sala mais distante; preparam-no lá longe, para que ela não ouvisse as marteladas.

Quando acordou, quis ver o menino, mas o marido disse-lhe com voz sufocada pelas lágrimas:

- Já fechamos o caixão: era preciso…

E a mãe, chorando alto, gritou:

- Se Deus se mostra duro comigo, por que haviam os homens de ser diferentes?

Sepultaram a criança. A mãe inconsolável ficou sentada ao lado das filhas; olhava para a porta , mas sem a ver. E seus pensamentos, dali em diante, já não tinham ligação alguma com o lar. Entregava-se à dor, que arrojava de um lado para outro, como as ondas do mar jogam com barco sem leme nem piloto. Passou assim  o dia do enterro, e que se seguiram foram do mesmo  modo cheios de mágoa sombria e pesada.

As filhas e o marido aflito observavam-na, com os olhos úmidos e cheios de tristeza; ela não ouvia as palavras de consolação - se é que alguma consolação lhe podiam oferecer aqueles que também se sentiam tão profundamente abalados.

Ela já não sabia o que era sono; e contudo seria ele, naquela situação, o seu  melhor amigo; mais que qualquer outra coisa poderia revigorar-lhe o corpo e apaziguar-lhe a alma. Persuadiram-na , ainda assim, a recolher-se, e ela ficava deitada, tranquila, como se dormisse.

Certa noite o marido observou-lhe a respiração e ficou persuadido de que ela finalmente encontrara repouso e alívio no sono. De mãos juntas rezou e pegou no sono, um sono profundo e benfazejo. Não viu pois quando a mulher se levantou, vestiu-se e saiu de casa de mansinho; queira ir ao lugar para onde iam, noite e dia, os seus pensamentos - o túmulo que encerrava o seu filho. Atravessou o jardim, depois os campos, tomando o trilho que levava ao cemitério, sem ninguém, a visse. Também ela não teria visto ninguém, porque só tinha olhos para o seu único objetivo.

A noite era esplêndida, cheia de estrelas;  o ar estava ainda suave, pois mal começara o outono.

Ela entrou no cemitério e parou em frente do pequenino túmulo, que parecia um grande ramalhete de flores perfumadas. Sentou-se e curvou a cabeça sobre a sepultura, como se pudesse, através da espessa camada de terra, ver o filhinho , cujo sorriso lhe aparecia tão nitidamente diante dos olhos e cuja expressão carinhosa, até no leito da dor, era inesquecível. E que olhar expressivo era o da criança, quando ela se inclinara, pegando-lhe na mão tão magrinha, que ele próprio já não podia erguer! E assim como sentava antes junto do leito, ficava agora ali  ao pé do seu túmulo.

 - Desejas descer até onde está teu filho? - perguntou uma voz perto dela.

Era uma voz que ressoava clara, profunda, e que lhe chegou até o coração. Ela ergueu os olhos e viu a seu lado uma mulher envolta em um manto preto, com o rosto embuçado num capuz. Por baixo deste conseguiu a mãe ver um rosto grave mas que inspirava confiança.

Os olhos brilhavam, no esplendor da juventude.

- Descer até onde está meu filho? - repetiu ela com voz suplicante e desesperada.

- Atreves-te a seguir-me? Sou a morte.

A mãe fez um gesto afirmativo.

Dir-se-ia que de repente as estrelas, lá nas alturas, tinham adquirido o brilho da lua cheia. Viu a mãe o esplendor das flores variegadas do túmulo, cuja camada de terra ia cedendo brandamente, suavemente, como um pano enfunado pelo vento. E ela ia descendo devagar, enquanto o vulto a cobria com o seu manto negro. Fez-se noite  e a noite da morte. A mãe ia caindo , caindo, penetrando em uma profundidade que a pá do coveiro não alcança. E o cemitério ia formando uma abóbada acima da sua cabeça.

Caiu a aba do manto e ela se  viu em uma sala enorme, vasta e acolhedora. Reinava ali um crepúsculo, mas apareceu-lhe imediatamente o filhinho, que se aconchegou a ela, sorrindo; e havia naquele sorriso tamanha beleza, como jamais lhe vira no rosto. Ela soltou uma exclamação que não foi ouvida, porque soava ao redor dela, ora muito perto, ora muito longe , e de novo perto, uma música magnifica, que ia subindo em um suave crescendo; nunca lhe tinham chegado aos ouvidos sons assim beatíficos! Vinham de trás da espessa cortina negra como a noite, que separava a sala do grande país da Eternidade.

– Mamãe querida, minha mamãe!

Ela ouvia a voz do filho, a voz conhecida e adorada…

E um beijo se seguia a outro beijo, e ela sentia uma felicidade infinita. E a criança apontou para a cortina escura:

- Não há na terra tanta beleza, mãe! Estás vendo? Vês a todos eles, mãe? Ah! Isto é que é felicidade!

Mas a mãe nada via no ponto que a criança lhe mostrava - nada , a não ser a noite sombria. É que via com olhos terrenos, não como a criança que Deus já chamara para si. Também só ouvia a melodia da musica, os sons; não entendia a letra, não ouvia as palavras em que deveria crer.

- Agora posso voar, mãe! Voar com todas as outras crianças alegre, voar para Deus. Eu gostaria tanto de ir... mas se choras assim talvez eu me perca! E eu gostaria tanto de ir! Tu me deixarás voar, não é , mãe? Daqui a pouco te reunirás lá comigo, mãe!

- Fica, oh! fica aqui! Só um instantinho... Quero somente te olhar mais uma vez.

E beijava e acariciava a criança.

Mas ouviu que a chamavam lá de cima; chamavam-na pelo nome, com voz queixosa. Que seria aquilo?

- Estás ouvindo, mãe? É o pai quem te chama.

E instantes depois ela ouviu gemidos; parecia choro de crianças. e o menino disse de novo:

- São as minhas irmãs... Tu não te esqueceste delas, não, mãe?

E a mãe lembrou-se dos que deixara lá em cima. Sentiu em grande pavor. Olhou para a sala, onde passavam sempre vultos e mais vultos, voando. Pareceu-lhe que  conhecia alguns  dos  que andavam pela sala da Morte, em busca da cortina negra, por detrás da qual desapareciam. Iriam também passar por ali o marido e as filhas? Não isso não: seus chamados e seus suspiros vinham de cima. De repente disse o menino:

- Mãe! Mãe! Agora repicando os sinos do Céu... Está nascendo o sol!

E derramou-se sobre a criança uma luz arrebatadora. A mãe sentia que ia subindo... De repente sentiu frio. Levantou  a cabeça e viu que estava deitada no cemitério, sobre a sepultura do filho.

Mas naquele sonho Deus iluminara o seu entendimento. A mãe dobrou os joelhos e rezou:

- Ó Senhor, meu Deus, perdoa-me ter desejado deter uma alma eterna na sua viagem! Perdoa-me ter esquecido dos meus deveres para com os vivos, que me deste nesta Terra!

E depois dessas palavras seu coração ficou aliviado. Surgiu o sol. Um passarinho cantava acima da sua cabeça, e os sinos da igreja repicavam, anunciando o oficio de manhã. Tudo o que a cercava se tornou sagrado para o seu coração. Agora conhecia o seu Deus,  conhecia os seus deveres e, cheia de saudade, correu para casa. Curvou-se sobre o marido, que ainda dormia. seu beijo ardente e cheio de fervor acordou-o. Dos lábios do casal brotaram palavras vindas do íntimo do coração. Ela era agora forte e meiga, como  a mais meiga das esposas. Vinha dela uma fonte de consolação:

- Deus faz tudo sempre pelo melhor!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1859.

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