sexta-feira, 28 de abril de 2023

Humberto de Campos (O Limo)

Mme. Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez, o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas irretorquíveis do conselheiro Brazilino do Amaral.

Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey-Club, quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à porta, Mme. Costa Mafra perguntou:

- Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?

O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:

- Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da sua costela.

- Isto eu sei.

- Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de árvore, na oficina do Paraíso.

- E a mulher?

- A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em compensação, sem o limo na face.

D. Arabela descansou o queixo de bonequinha alemã no polegar e no indicador da mão esquerda, e, ao dar com os olhos no próprio braço de mármore posto a descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:

- E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?

O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que, defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava, com significativos tremores na voz:

- Conselheiro, tome o seu chá...

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

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