quinta-feira, 27 de abril de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Tadinha!)

BASTAVA A LARISSA fazer qualquer coisa errada, lá vinha alguém passando a mão na cabeça:

— Tadinha!

A coisa começava cedo, na hora do matinal:

— Pão?

— Só com manteiga.

— Torradas?

— Me dá aflição nos dentes.

— Café?

— Sem leite e com muito açúcar.

— Ovos?

— Cozidos e bem salgados. Não gosto desses mexidos que a empregada faz. Me dá nojo!


A avó Lola se mostrava totalmente contra a realização de todas essas vontades e caprichos. E sempre que podia deixava bem clara e patente a sua impertinência quanto a isso:

— Não está exigindo muito para uma pessoinha da sua idade, Larissa?  – Berrava, insatisfeita com as descomedidas da neta. – Nunca vi uma menina cheia de manias e não me toques.

Ao contrário dela, o avô Genésio, relutante e gentil, comungava com os pensamentos da menina e a defendia ferrenhamente de unhas e dentes:

— Tadinha, Lola!!!

— Tadinha coisa nenhuma. No meu tempo, meus pais não me davam escolhas. Eu que não aprontasse algo, pra ver se a fivela do cinto não comia nos costados. Mandava pra dentro o que tivesse na mesa, ou ficava de castigo, com os joelhos no milho...

— No seu tempo não existia eletricidade nem água encanada, Lola. Tampouco forno de micro-ondas. Estamos, minha velha, na era da tecnologia. Luz de velas, só em filmes de terror dos idos de Hitchcock.

— Pode até ser. Não discordo de você, meu esposo. Mas concorde comigo, pelo menos nesse ponto. Certas frescuras afloram desde os primórdios tempos em que a sua bisa andava de bicicleta de uma roda só e se pegava moscas com mel. 

No almoço, a mesma cena se repetia. Chegava a dar asco em quem estivesse por perto:

— Arroz?

— Tira esses “trocinhos” vermelhos.

— São tomates. Faz bem pra saúde.

— Não pra minha!

— Carne?

— Sem pelancas...

— Farinha?

— Gruda nos dentes.

— Pegue a colher...

— Só como com garfo e faca.

— Água, Melissa?

— Quero refrigerante. Não gosto de água. Estufa a barriga e me faz parecer gorda e balofa.

A avó Lola, gente antiga e de ideias antiquadas e retrógradas, não desistia de sua empreitada. Ralhava com vontade. Marcava em cima do lance. Sem dó nem piedade. Brigava mesmo. Genésio, porém, embora passasse dos oitenta –, seguia por caminhos extremamente complacentes e apaziguadores. Lutava contra todos para ficar ao lado de Larissa, a única netinha e realizar seus desejos mais corriqueiros e absurdos:

— Tadinha, Lola!!! Deixa de implicar com essa criança. Que coisa! Nem parece que já passou por essa idade!...

— Sei que passei, como todos passamos. Todavia, no meu tempo de mocinha, ai de mim se...

Assim acontecia o tempo inteiro. No lanche das três, na mesa de jantar, no banho, e, à noite, na hora de sentar na sala para ver a novela na televisão em preto e branco. Igualmente, ao se recolher ao quarto para dormir, ou logo noutro dia cedinho ao acordar e se aprontar para o grupo escolar. Não diferenciava em nada as idas ao que hoje chamam de “shopping” para comprar roupas, sapatos e objetos de maquiagem. 

Se a mocinha desse o contra, pronto –, aparecia a avó falando pelos cotovelos. Passos atrás, pintava o avô (com seus vagarosos de gente que estava com a vida ganha), brabo, trepado nos cascos, fazendo valer os direitos e deveres da guria, rezando a sua cartilha, pelejando para que os pais verdadeiros Anahí e Gaudêncio deixassem por menos e se curvassem aos impulsos da pequena. O tempo seguiu sem maiores contratempos. Larissa cresceu. A avó Lola e o avô Genésio morreram. O pai (tal como a falecida mãe, dona Lola), seguia a sua linha de pensamentos em oposição aos demais. Enérgico, não dava tréguas.  

Um dia, pintou o primeiro namoradinho:

— Onde já se viu, Anahí, deixar a nossa filha namorar um moleque esquisito igual a esse? Reparou nos cabelos? Nos brincos nas orelhas? Como se não bastasse, piercings na língua, nos olhos, sem falar nas tatuagens, aqui e ali!? Nem escrever esse filho de uma égua sabe direito...

— Tadinha, Gaudêncio!!! Nossa donzela fez treze anos ainda ontem!... não é mais aquela garotinha que se escondia pelos cantos da casa, fazia xixi... e eu, ou você, ou seus pais. carecíamos trocar as fraldas...

O tempo inexorável continuou sem mudanças. A menina, debutou. Quinze anos. Fizeram uma festança inesquecível para comemorar a data. Então, um belo dia, apareceu, não se sabe como, grávida. Escondeu a besteira da prenhez o quanto deu das vistas de todos. Entretanto, no dia em que a barriga imensa decidiu saltar para fora, mostrando o imprevisto da fatalidade e empurrando o nascimento de um novo ser para a vida plena, tudo ao redor dela se fez tarde, muito tarde demais. Gaudêncio, foi à loucura. Explodiu, furioso e transtornado:

— Nossa filha barriguda, Anahí?

— Aconteceu, Gaudêncio, aconteceu! Tadinha!!!

— Vagabunda. Culpa sua e, antes, de meus pais. Viu no que deu os paninhos quentes? Não quero essa infeliz aqui em casa. Rua, rua com ela. Que vergonha, que vexame para a família! Sabe, ao menos, quem é o desgraçado do salafrário que embuchou essa desmiolada? Quero matar esse amaldiçoado como se mata um porco. Diga, quem é o pai? Quem é o miserando?

Dona Anahí desesperada, inventou uma mentira de última hora. O verdadeiro pai da criança, o moleque esquisito, escafedera. “Graças aos céus”. Jogaria com a sorte. Se desse errado... 

— O pai da criança, Gaudêncio é o tio dela, seu irmão Felipe, de dezessete anos, o caçula que veio morar aqui em casa, logo após o falecimento de seu Genésio e dona Lola. E agora? Você sairá à cata e matará seu próprio sangue? Tem realmente coragem de tirar a vida do seu irmão e botar nosso bebê (agora com seu neto recém-nascido, quer você queira, ou não), junto com a nossa filhinha que você ama incondicionalmente do fundo da alma, sem mais nem menos para fora de casa e vê-la jogada como um bicho pelas sarjetas da vida desumana e cruel? Tadinha!!!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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