quinta-feira, 20 de abril de 2023

Raul Arruda Filho (Iabadabadu!)

O Brasil é o país das crônicas – e dos cronistas. Em cada esquina (ou jornal ou revista), alguém está de plantão, pronto para colher, na fonte, as boas (e más) histórias que integram o cotidiano. Nesse caminhar trôpego, “ligeiramente embriagadíssimo”, como repetia mestre Nereu Goss, a crônica é uma espécie de comentário datado sobre algum acontecimento – e que, se não fosse pelo registro fatual, acabaria desaparecendo na seqüência de eventos “maiores” que constituem a vida urbana.

Como nunca foi considerada “a” musa da literatura brasileira, muito antes pelo contrário, não falta quem a classifique como um gênero “menor”, quer dizer, sejamos francos, texto de segunda classe, desses bem vagabundos, que qualquer um (qualquer um!) pode escrever para ganhar uns trocados.

A turma “do contra” costuma usar uma fórmula divertida: dizem que se trata de uma forma híbrida (e o uso da palavra “híbrida” sempre está envolto no papel celofane do desprezo) de literatura e jornalismo, e que só existe para preencher aquele espaço que não foi utilizado com a notícia. Trocando em miúdos, um calhau, cujo futuro é embrulhar o peixe (ou coisa pior) no dia seguinte à sua publicação.

“São os teus olhos”, rebatem os cronistas, toda vez que recebem uma crítica negativa, uma patada amorosa, recalques de quem não sabe (ou não quer) dizer “eu te amo”. Tia Zulmira explica, complica, simplifica, amplifica. Ou deixa pra lá, porque “as amargas, não”, como dizia um velho cronista, Álvaro Moreyra, escritor que, como poderia ser diferente?, ninguém lembra mais, inclusive porque jamais participou de “reality show” ou gozou de merecidos 15 minutos de fama na Rede Globo.

De qualquer maneira, a crônica consegue ser refratária à “sua mais completa tradução”. E isso é um desafio para o mundo acadêmico. Basta lembrar que, nessa seara, alguns teóricos não economizaram papel e tinta de impressão para impressionar o distinto público com as certezas do mundo. Esforço em vão, diga-se de passagem, pois o santo Graal – ainda – continua desaparecido. Por isso, entre lamentos e sorrisos colgate (modelo gato de Cheshire), algumas “otoridades”, não podendo eludir o deserto das indefinições, acabaram iludindo a si mesmas com o “embromeichom”. Existem vários estudos refinadíssimos, trezentas notas de rodapé, bibliografias quilométricas, biscoitos finos, sabor quase (quase!) idêntico ao daqueles amanteigados dinamarqueses. Todos concluem em agradável surpresa: tudo continua como dantes, no quartel de Abrantes.

De qualquer forma, alguma coisa se salvou: os comentários sobre a linguagem que a crônica utiliza para se comunicar com o leitor. Transitando entre o relato coloquial e a prosa poética, ela permite aventuras estilísticas que abrangem desde a compreensão do mundo através do particular até o escracho monumental. De fato, a crônica é aquele texto onde você pode soltar expressões como “iabadabadu”, “aiou, Silver” ou “fala, amendoeira” no meio da frase e ninguém vai reclamar do conteúdo – ao contrário, são essas situações humanas, demasiadamente humanas (um lampejo daquela cena em que o cara molhava o biscoito no chazinho tépido e entrava em transe para escrever umas 3.000 páginas) que possibilitam ao leitor o reencontro com a ilusão, momento em que é possível acreditar que toda a sabedoria do mundo estava contida nas sagradas páginas do Almanaque Sadol (ou Biotônico Fontoura ou Capivarol). Vai dizer que você não se lembra disso?

Noves fora zero, o aspecto secundário da contradição principal (como lembrava, didaticamente, o camarada Mao Tse Tung) está na constatação de que a crônica, com exceção de alguns clássicos (Rubem Braga, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino e Luís Fernando Veríssimo), jamais foi convidada para tomar assento no panteão das letras. Nos jornais, tudo bem. Nas últimas páginas das revistas, nenhum problema. No entanto, como ensina a regra que divide a idolatrada salve salve em Casa Grande e Senzala, “é preciso saber o seu lugar”.

Que tal começar com algum Fernando Sabino? Não é preciso escolher, qualquer um dos seus livros está repleto de “quero mais”, o cara sabia das coisas e escrevia como se estivesse conversando com o leitor, aquela mistura de sabedoria e bom humor que só os gênios conseguem reunir.

Ou Aldir Blanc e Ivan Lessa? Aldir Blanc, náufrago de boleros e sambas-canções (“Eu hoje me embriagando / de uísque com guaraná / ouvi tua voz murmurando: / são dois pra lá, dois pra cá”), fez questão de colocar na lâmina do microscópio social a verdadeira tragédia suburbana: churrasco no quintal, cerveja gelada, palavrões e a sadia sacanagem com a vítima que estiver de plantão. E, óbvio, um imenso dane-se para o politicamente correto! Ivan Lessa é um pouco diferente: com um texto mais aristocrático, nunca negou as raízes de quem nasceu em berço de ouro e leu tudo antes dos vinte anos – agora, olhando as ruínas, cospe sabedoria nos menos aquinhoados. Pois é, com esses dois sujeitos todo cuidado é pouco, toda palavra é armadilha, “Você conhece o Lochas?” “Aquele que...”

Ou Antonio Maria e Stanislaw Ponte Preta? Nos textos dessa distinta dupla, as dores de corno são passageiras habituais do bonde que leva os cafundós do Judas até o lugar onde o diabo perdeu as botas. Nesse cenário fofo, não dá para evitar a parada obrigatória, algum boteco sórdido, onde, ao final da noite, muitos guerreiros tentam afogar as mágoas com martelinhos de pinga com mentruz, ou, se o sujeito ainda dispuser de alguma força, no corpo de alguma das “certinhas do Lalau”, verdadeiro bilhete de loteria premiado (aquele mesmo que tantas vezes ficou para trás, acenando promessas).

Também é possível ler alguma coisa do Luís Fernando Veríssimo, prato cheio para quem gosta de humor pasteurizado, revestido com o verniz intelectual pequeno-burguês, típico de quem, na infância, sempre teve dinheiro para completar o álbum de figurinhas. Pelo mesmo caminho segue um escritor de qualidade, apesar de chatinho: Rubem Braga. Esbanjando uma lírica que sempre defendeu que o Rio de Janeiro é o umbigo do mundo, o ilustre cronista definitivamente desconhecia o que significa morar em palafita, andar de pés descalços por não ter dinheiro para comprar chinelo ou as delícias de roubar manga (como fez tantas vezes o Carlos Heitor Cony, que, guardadas as devidas proporções, é vinho de outra pipa, safra nobre, item de colecionador).

Há outros cronistas. Claro que há. Um punhado de humoristas, um caminhão de trágicos. Além dos “mais ou menos” – desses há milhares, bilhões. É cronista que não acaba mais, Deus nos acuda! De qualquer maneira, uma seleção de craques poderia ser escalada assim: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, José Carlos de Oliveira, Roberto Drummond, Nelson Rodrigues, Lourenço Diaféria, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Millor Fernandes. Na reserva: Raul Drewnick, Maria Rita Kehl, Zuenir Ventura, Mário Prata, Marcelo Rubens Paiva, Martha Medeiros e Danuza Leão, entre tantos outros.

Por essas e outras, muitas outras, só nos resta lembrar Fernando Sabino, que, em momento ternurinha, parodiou um verso de Manuel Bandeira, e escreveu que queria que as suas crônicas fossem puras como um sorriso. Nunca me pareceu que estivesse pedindo algum absurdo.

Fonte:
Escritores do Sul. Acesso em 17 out 2011.

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