A MESA DO CAFÉ ESTÁ POSTA. Abarrotada e demasiadamente farta. Ao redor desse imenso móvel todo talhado em madeira de lei, sentados, comportadamente, nós, crianças esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três. Hoje não faltará o pão caseiro. Somente a “Mãe Chica”, com as mãos hábeis dadas por Deus, sabe preparar essa fogaça (pão doce e enorme). Completando, bolo de farinha de trigo com água, sal e ovos; manteiga; pipocas salgadinhas; leite tirado na hora e café moído pouco antes de ir ao coador. Como variação, torta de chocolate, bananas assadas com açúcar e canela.
Também no cardápio: maçãs vermelhinhas em pedaços; suco de frutas geladinho; queijo cortado em retalhos; presunto e mortadela em fatias. Há igualmente, de reserva, um pacote recheado (com as famosas bolachinhas da venda de “Seu Pereira”), que aguarda, de pronto ser aberto e devorado. Da cozinha contígua, às dependências do resto da construção, ninguém parece sentir o calor abafadiço da tarde linda e comprida. Lá fora, no grande terreiro, um sol ardente se espalha e se dispersa pelo quintal da propriedade que se divorcia das vistas, calcinando a quinta (propriedade) batida e as plantinhas desprotegidas do resguardo das sombras.
Até as águas ligeiras e cristalinas de um córrego centenário que descem das montanhas seguem numa lentidão acanhada e preguiçosa, e, ao passarem sob a diminuta ponte da divisa do sítio, dão a impressão de imprimirem uma breve pausa como que para se refrescarem debaixo de uma mangueira imponente e altiva, abrigo de dezenas e centenas de pássaros que campeiam toda a extensão dessas paragens. No extremo apartado, para as bandas onde o infinito parece se abraçar à Terra, uma quase imperceptível elevação de poeira amarela se mistura com o ar mormacento e encalmadiço do dia bucólico marchando vagarosamente para o encontro de um ponto determinado.
De fato. É um cavalo trazendo no lombo Vovô Jeremias, que, “atrasado” para a merenda, voa sobre as patas ligeiras de um fogoso garanhão:
— Tenham calma! O avô de “oceis loguinho apeia”.
Instantes depois, como previsto, Vovô Jeremias entrega a sua montaria à Mãe Chica que, mostrando o melhor sorriso nos dentes claros, acorre a receber o cavaleiro que desmonta espavorido sacudindo as roupas:
— Boas tardes, Mãe Chica...
— Boas, “Sinhô Jeremis!”.
Vovô Jeremias, ou como o trata, a Mãe Chica, de “Sinhô Jeremis” (ela não sabe pronunciar Jeremias) se emoldura num oitentão alto e corpulento, cabelos brancos e rugas precoces vincando as faces coradas. Pecuarista (Negociante de gado de corte), esse homem de coração aberto e feições tranquilas prospera criando, comprando e vendendo rebanhos da raça Nelore. Por conta disso, possui nos arredores do povoado três fazendas com um número gigantesco desses animais. Se tornou um dos mais ricos e abastados fazendeiros e exportadores da região. Atualmente, o Senhor Jeremias desfruta do que semeou desde seu passado distante, juntamente com Maria Sinhá (a nossa Vovó Sinhá), companheira de tantos e tantos janeiros.
Os dois, agora, vivem nessa etapa pacífica da vida, ou seja, se dedicam aos filhos e seus descendentes:
— Olá, querida!
— Olá, querido!
Após beijar a esposa, parte em direção ao espaço onde quatro boquinhas famintas o esperam. Primeiro se aproxima das meninas Luzia e Luana e as abraçam com demorados afagos. Depois, repete o mesmo gesto comigo e Roberto Júnior. Vovô Jeremias se mostra tão estimado por todos nós, que, sempre brigamos distribuindo uma série de tapas e beliscões “carinhosos” disputando acirradamente o colo do ancião.
Nessas ocasiões é necessária a imediata intervenção de Vovó Maria Sinhá, e as promessas solenes de que, dia seguinte, providenciará junto com a Mãe Chica, o prato predileto de cada um de nós em particular. Somente dessa forma consegue acalmar os ânimos alvoroçados:
— “Nóis távamos” famintos, vovô!...
— Ué, não “tão” mais?...
— Lógico que sim, vovô!
Desfazendo-se do chapéu de abas largas, o Senhor Jeremias caminha até o lavatório e ali se alivia um pouco do calor abrasante causado pela elevação da temperatura que o acompanhou desde a cidade.
O líquido gelado jorrando da torneira aberta sobre suas mãos enrugadas lhe traz a sensação reconfortante da missão do dever cumprido. Em seguida, sem mais delongas, se acomoda em sua cadeira predileta, levanta a mão direita e grita sorridente:
— Muito bem, pirralhos e pirralhas! Canecas nas mãos. Vamos acabar com as coisas gostosas que aqui estão!...
A mesa do café posta. Ao redor desse móvel, sentados comportadamente, nós quatro esperamos Vovó Sinhá servir as guloseimas que foram feitas para o lanche das três:
— Venha se sentar também conosco, Mãe Chica. Afinal de contas, a sua carcaça de ossos elegantes já faz parte integrante das mobílias da casa.
Mãe Chica, recatada num intervalo necessário, não espera segunda ordem. Conspícua, sorriso largo, se acomoda ao lado de vovô Jeremias e Vovó Sinha:
— Pois é pra já, “Sinhô Jeremis...”.
Enquanto isso, pela paisagem enquadrada nas janelas da ampla cozinha, ao lado do fogão de lenha, à tarde pressurosa se faz ainda mais elegante e soberba. O sol quente, bonito e majestoso, continua a admoestar, sem compaixão, as criações, as aves e as plantinhas desamparadas e indefesas do resguardo precioso das sombras.
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Texto enviado pelo autor.
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