segunda-feira, 24 de abril de 2023

Contos e Lendas do Mundo (África) O filho do médico e o rei das cobras

Muito tempo atrás, um médico sábio, ao morrer, deixou uma esposa e um bebê. Na idade apropriada, o menino foi batizado com o nome escolhido por seu pai: Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

Quando o garoto terminou seus estudos e já sabia ler, sua mãe o enviou a um alfaiate para aprender a profissão. Não conseguiu. Depois, o mandou até um ourives e ele tampouco foi capaz de dominar esse ofício. O menino tentou diversos trabalhos, sem sucesso em nenhum deles. Enfim, sua mãe disse: 

— É melhor você ficar em casa por um tempo — e essa proposta lhe agradou.

Um dia, Hassee’boo perguntou à sua mãe qual era a profissão de seu falecido pai. Ela contou que ele havia sido um grande médico.

— E onde estão os livros dele? — indagou o menino.

— Faz muito tempo que não os vejo, — respondeu a mãe — mas devem estar no quarto dos fundos. Vá procurá-los.

Hassee’boo vasculhou a casa até encontrá-los, mas estavam praticamente destruídos por insetos. Não foi possível aproveitá-los.

Tempos depois, quatro vizinhos foram à sua casa e pediram à mulher:

— Seu filho pode vir conosco cortar lenha na floresta?

O trabalho consistia em cortar madeira, carregá-la em burros e vendê-la na cidade, onde era usada em fogueiras.

— Claro. — respondeu ela. — Amanhã comprarei um burro para que ele comece a trabalhar com vocês.

No dia seguinte Hassee’boo, montado em seu burro, saiu com seus quatro novos companheiros. Trabalharam muito e ganharam bastante dinheiro durante seis dias. No sétimo, uma chuva muito forte levou todos a se abrigarem em uma caverna.

Hassee’boo sentou-se sozinho. Como não havia nada para fazer, ele começou a bater uma pequena pedra no chão. Surpreendeu-se com o ruído surdo que o solo fazia, como se estivesse oco. Chamou os outros e disse:

— Parece que há um buraco aqui embaixo.

Bateu a pedra no chão novamente para que ouvissem. Decidiram investigar a causa. Bastou cavarem um pouco para descobrirem um buraco fundo como um poço, repleto de mel até a borda. Desistiram de cortar lenha e decidiram coletar e vender o mel.

Como queriam retirar tudo o mais rápido possível, pediram para Hassee’boo entrar no poço e ir recolhendo o mel, que seria colocado em vasos e levado para ser vendido na cidade. Trabalharam por três dias seguidos e ganharam muito dinheiro.

Quando sobrou apenas um pouco de mel no fundo, pediram que o menino retirasse tudo o que restava e foram buscar uma corda para içá-lo de volta. Mas a verdade é que os quatro decidiram deixar o menino no buraco e dividir o dinheiro. Quando Hassee’boo acabou de juntar o mel, gritou para que lançassem a corda, mas não obteve resposta. Após três dias sozinho no poço, finalmente entendeu que fora abandonado por seus companheiros.

Os quatro lenhadores foram até a casa da mãe de Hassee’boo e disseram que o menino tinha se separado deles na floresta. Chegaram a afirmar que ouviram o rugido de um leão. Garantiram ter procurado o menino, porém não encontraram nenhum rastro dele nem do burro.

A mãe de Hassee’boo chorou muito, como era de se esperar, e os quatro vizinhos ficaram com todo o dinheiro. Enquanto isso, o menino andava pelo fundo do buraco em busca de uma saída, comendo restos de mel, dormindo e pensando no que fazer.

No quarto dia, enquanto pensava, viu um grande escorpião no chão e o matou.

Imediatamente algo lhe ocorreu:

— De onde veio esse escorpião? Deve haver uma abertura em algum lugar. Vou tentar encontrá-la.

Olhou em volta até perceber um pequeno facho de luz que surgia de uma fresta minúscula. Apanhou sua faca e escavou até abrir um buraco largo o suficiente para que pudesse passar. Atravessou a abertura e saiu em um local que nunca havia visto antes.

Notou uma trilha à sua frente. Seguiu por ela até encontrar uma casa muito grande, cuja porta estava entreaberta. Lá dentro, viu que as portas eram douradas e tinham chaves de pérola nas fechaduras, também douradas. A casa estava cheia de lindas cadeiras incrustadas de joias e pedras preciosas. Na antessala, encontrou um sofá coberto por uma colcha deslumbrante e se deitou para descansar.

Assim que adormeceu, alguém o colocou em uma cadeira. Acordou com uma voz dizendo:

— Não o machuque, vamos acordá-lo suavemente.

Abriu os olhos e se viu cercado por várias cobras. Uma delas tinha cores muito vivas.

— Olá! Quem é você?

— Sou Sulta’nee Waa’ Neeo’ka, rei das cobras. Esta é minha casa. E você, como se chama?

— Eu sou Hassee’boo Kareem’ Ed Deen’.

— De onde veio?

— Não sei de onde eu vim, nem para onde vou.

— Bem, não se preocupe com isso agora. Vamos comer. Imagino que esteja com fome. Eu estou, pelo menos.

O rei ordenou que seus criados trouxessem comida. Foram servidas lindas frutas. Todos comeram e beberam enquanto conversavam.

Ao final da refeição, o rei quis saber mais sobre Hassee’boo. O menino contou tudo o que havia acontecido até então. Depois pediu ao anfitrião que falasse um pouco de si.

— Minha história é um tanto longa, mas posso lhe contar. — disse o rei das cobras. — Há muito tempo, saí desta casa e fui morar nas montanhas de Al Kaaf. Queria mudar de ares. Um dia encontrei um estranho que passava por ali e perguntei a ele:

“De onde você é?”

“Estou vagando pelo deserto”, ele respondeu.

“E quem é seu pai?”

“Meu nome é Bolookee’a e meu pai era um sultão. Quando ele morreu, encontrei um pequeno baú, dentro do qual havia uma bolsa com uma caixinha de latão. Nessa caixinha encontrei um pergaminho guardado dentro de um pano de lã. O texto falava sobre um profeta. Dizia tantas coisas boas e maravilhosas a seu respeito que tive vontade de conhecê-lo. No entanto, quando comecei a perguntar às pessoas sobre ele, me disseram que ainda não havia nascido. Então jurei que andaria pelo mundo até encontrá-lo. Deixei minha cidade e minhas propriedades. Desde então estou vagando, mas ainda não o encontrei.”

“E onde você espera achar esse homem, se ele ainda não nasceu?”, perguntei ao andarilho. “Se você tivesse um pouco de água de serpente, conseguiria se manter vivo até encontrá-lo. Mas talvez seja um conselho inútil, pois não há água de serpente nessas redondezas.”

“Bem, devo continuar minha jornada. Adeus.”

E assim nos despedimos e ele seguiu seu caminho. Andou até o Egito, onde encontrou um homem que também lhe perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Bolookee’a. E quem é você?”

“Meu nome é Al Faan’. Aonde você está indo?”

“Deixei minha casa e minhas propriedades para procurar o profeta.”

“Ah! Há coisas melhores a se fazer do que procurar um homem que ainda não nasceu. Vamos até o rei das cobras pedir uma poção mágica. Depois, iremos até o Rei Salomão e pegaremos seu anel. Com ele, dominaremos os gênios e os ordenaremos a atender todos os nossos pedidos.”

Nesse momento Bolookee’a disse:

“Eu conheci o rei das cobras na montanha de Al Kaaf.”

“Vamos até lá então”, disse Al Faan’.

Al Faan’ queria o anel de Salomão porque sabia que com ele teria grandes poderes mágicos: controlaria os gênios e os pássaros. Bolookee’a queria apenas conhecer o grande profeta.

“Tudo bem”, concordou Bolookee’a.

Os dois levaram uma armadilha até Al Kaaf, dentro da qual colocaram um copo de leite e outro de vinho. Eu caí na armadilha como um tolo. Entrei na gaiola, bebi todo o vinho e fiquei bêbado. Os dois então fecharam a porta e me levaram.

Quando recuperei os sentidos, vi que estava preso e era carregado por Bolookee’a. “Não se pode confiar nos filhos de Adão. O que querem de mim?”, perguntei.

“Queremos uma poção para usarmos em nossos pés e caminharmos sobre a água sempre que isso for necessário em nossa jornada”, responderam.

Concordei e disse para seguirmos em frente.

Chegamos a um bosque com muitas árvores. Quando me viram, elas foram dizendo, uma a uma, “Eu sou remédio para isso’”, “Eu sou remédio para aquilo’”, “Eu sou remédio para a cabeça”, “Eu sou remédio para os pés”, até que uma das árvores disse: “Se alguém passar minha seiva nos pés, poderá andar sobre as águas”.

Revelei aos homens o que a última árvore havia me dito. Era o que procuravam. Retiraram uma grande quantidade de líquido de suas folhas e me levaram de volta à montanha. Lá, eles me libertaram e seguiram seu caminho.

Quando enfim alcançaram o mar, usaram a seiva e caminharam sobre a superfície da água. Andaram muitos dias até chegarem nas proximidades do palácio do rei Salomão. Então fizeram uma parada para que Al Faan’ preparasse suas poções.

Ao entrarem no palácio, encontraram o rei Salomão dormindo e a mão com o anel estava apoiada em seu peito. Os gênios do rei vigiavam seu sono.

Bolookee’a se aproximou e um dos gênios disse:

“Aonde você vai?”

“Vim aqui com Al Faan’, e ele vai pegar o anel do rei.”

“Vá embora”, respondeu o gênio. “Saiam daqui, ou seu amigo morrerá.”

Al Faan’, já com suas poções prontas, pediu para Bolookee’a apenas esperar. Aproximou-se do rei para pegar o anel, mas deu um grito ensurdecedor e foi lançado por uma força invisível a uma distância impressionante.

Levantou-se acreditando que as poções ainda faziam efeito e correu novamente em direção ao rei. Uma forte rajada de ar soprou sobre ele, reduzindo-o a cinzas instantaneamente.

Uma voz falou a Bolookee’a, que permanecia no mesmo lugar:

“Vá embora. Esta criatura miserável está morta.”

O andarilho fugiu do palácio e, quando chegou novamente à praia, colocou a poção em seus pés para atravessar as águas. Continuou vagando pelo mundo por muitos anos.

Em uma de suas andanças, certa manhã, encontrou um homem sentado no chão. Após trocarem cumprimentos, Bolookee’a perguntou:

“Quem é você?”

“Me chamo Jan Shah. E você?”

Bolookee’a se apresentou e quis saber a história de seu novo amigo. O homem, que ora chorava, ora sorria, fez questão de que o andarilho contasse a sua primeiro. Após ouvi-la, começou:

“Sente-se comigo e contarei minha história do começo ao fim. Meu nome é Jan Shah. Meu pai é Tooeegha’mus, um grande sultão. Ele costumava caçar na floresta todos os dias. Certa vez, pedi para que me levasse junto. Ele disse não, que seria melhor eu ficar em casa. Chorei bastante e como meu pai me amava muito, por eu ser filho único, não suportou me ver naquele estado e consentiu que fosse caçar com ele.

“Entramos na floresta acompanhados de vários criados. Chegamos ao acampamento, comemos e nos dividimos em grupos.

“Seguimos, eu e mais sete escravos, até encontrarmos uma gazela. Fomos atrás dela, sem conseguir capturá-la, até chegarmos ao mar. O animal entrou na água e, junto com mais quatro escravos, continuei perseguindo-o de barco. Os outros três voltaram e se reuniram ao grupo de meu pai. Conseguimos apanhar a gazela, mas tivemos de nos afastar bastante da costa. Então fomos pegos por um forte vento, que nos desviou do caminho, e nos perdemos.

“Um dos três escravos que voltaram contou a meu pai sobre a gazela e o barco. O sultão começou a gritar que seu filho havia se perdido e, ao retornar à cidade, decretou luto por considerar que eu estava morto.

“Enfim conseguimos chegar a uma ilha com muitos pássaros. Encontramos frutas e água doce. Após comermos, subimos em uma árvore e dormimos até a manhã seguinte.

“Remamos até outra ilha deserta. Como na anterior, colhemos frutas e dormimos em uma árvore. Durante a noite, ouvimos vários animais selvagens uivando e rugindo perto de nós.

“Quando amanheceu, saímos de lá o mais rápido possível. Chegamos a uma terceira ilha. Ao procurar comida, encontramos uma árvore cheia de frutos parecidos com maçãs. Ao nos aproximarmos, ouvimos uma voz que dizia para não tocarmos na árvore, pois ela pertencia ao rei. Então avistamos vários macacos vindo em nossa direção. Pareciam muito contentes em nos ver. Deram-nos muitas frutas, as quais comemos até nos saciar.

“Um dos macacos propôs ao seu grupo que eu fosse nomeado sultão. Outro respondeu que de nada adiantaria, pois já na manhã seguinte iríamos embora. Um terceiro argumentou que não conseguiríamos fugir se eles destruíssem nosso barco. E de fato, ao nos preparamos para ir embora no dia seguinte, nossa embarcação estava em pedaços. Só nos restava continuar na ilha com os primatas, que pareciam gostar muito de nós. 

“Certo dia, enquanto eu caminhava, encontrei uma grande casa com uma inscrição na porta: Qualquer um que vier a esta ilha terá dificuldades em deixá-la, pois os macacos estão em busca de um homem que seja seu rei. Tal homem pensará que não há como fugir daqui, mas há uma saída ao norte. Ao seguir nessa direção, encontrará uma grande planície repleta de leões, leopardos e cobras. O homem deverá lutar com todos eles e, se vencê-los, poderá continuar. Então chegará a outra grande planície, habitada por formigas ferozes, com dentes afiados e do tamanho de cães. Também deverá vencê-las, somente então o caminho estará livre.

“Conversei com meus criados sobre o que fazer, e decidimos que, se fôssemos morrer de qualquer jeito, melhor seria fazê-lo na luta por nossa liberdade.

“Estávamos todos armados e nos pusemos a caminhar. Chegamos à primeira planície e enfrentamos os animais. Dois escravos foram mortos. Na segunda planície, lutamos com as formigas e mais dois criados morreram. Consegui escapar sozinho.

“Perambulei por muitos dias, comendo o que encontrava, até enfim chegar a uma cidade. Lá fiquei por algum tempo em busca de trabalho, mas sem sucesso.

“Um dia um homem veio até mim e perguntou se eu procurava uma ocupação. Ao responder que sim, ele me chamou para sua casa.

“Ao chegarmos lá, ele me mostrou uma pele de camelo e pediu que eu a vestisse. Segundo ele, se eu fizesse aquilo, um grande pássaro me carregaria até uma montanha distante. Uma vez no topo, o tal pássaro arrancaria minha pele de camelo e eu teria de afundar no chão as pedras preciosas que encontrasse. Quando todas as pedras estivessem enfiadas na terra, o homem viria me buscar.

“Tal como ele disse, vestiu-me com a pele e um pássaro veio e me levou até a montanha. Estava prestes a me devorar, mas eu me desvencilhei e o afugentei. Afundei muitas pedras preciosas e então chamei o homem para me tirar dali, mas ele nunca veio.

“Julguei que logo estaria morto e andei por muitos dias por uma enorme floresta, até encontrar uma casa. Era habitada por um velho, que me alimentou até que eu recuperasse minhas forças.

“Fiquei lá por muito tempo. O velho se afeiçoou a mim como se eu fosse seu filho.

“Um dia ele teve de sair e me deixou com um molho de chaves. Disse que eu poderia abrir qualquer porta da casa, exceto uma, que me mostrou apontando o dedo.

“É claro que foi a primeira porta que abri assim que ele saiu. Do outro lado vi um grande jardim onde corria um riacho. Três pássaros pousaram em uma de suas margens e imediatamente se transformaram nas mulheres mais lindas que eu já vi. Observei-as enquanto se banhavam. Depois elas se vestiram novamente, voltaram a se transformar em pássaros e saíram voando.

“Tranquei a porta e saí da casa. Não tinha fome e perambulei sem destino. Quando o velho voltou, percebeu algo estranho e me perguntou o que havia de errado. Contei a ele sobre as lindas moças e disse que estava apaixonado por uma delas. Se não pudesse me casar com ela, certamente morreria.

“‘Impossível’, disse-me o velho. As três donzelas eram filhas do sultão dos gênios e a viagem até a casa delas era uma jornada de três anos.

“Respondi que não me importava. Eu tinha de tornar minha esposa a moça pela qual havia me apaixonado, disso dependia minha vida. Ele então me disse para esperar até que elas voltassem. Eu deveria me esconder enquanto estivessem na água e roubar as roupas da minha amada.

“Assim fiz. Quando voltaram para outro banho, roubei os trajes da irmã mais nova, que se chamava Sayadaa’tee Shems.

“Como esperado, ela saiu do riacho e procurou por suas roupas, sem saber o que estava acontecendo.

“Então eu me apresentei e disse que estavam comigo. Implorou-me para que as devolvesse, pois precisava ir embora. Declarei meu amor e disse que queria me casar com ela. Insistiu dizendo que queria voltar para o seu pai. Respondi que não a deixaria partir.

“Após suas irmãs partirem voando, eu a levei para a casa. O ancião celebrou nosso casamento e me aconselhou a esconder suas roupas, pois se ela as encontrasse, voaria novamente para longe. Cavei um buraco fora da casa e as enterrei.

“Um dia, precisei sair de casa e Sayadaa’tee aproveitou-se de minha ausência, desenterrou as roupas e as vestiu. Mandou seu escravo me avisar que ela havia partido. Também mandou dizer que se eu realmente a amasse deveria ir atrás dela.

“Ao voltar para casa, soube de sua fuga e saí à sua procura. Perambulei por muitos anos até chegar a uma cidade. Um dos moradores quis saber meu nome e quem era meu pai. Respondi que era Jan Sha, filho de Taaeeghamus. Perguntou-me então se eu era o marido de sua senhora. A ouvir o nome dela, Sayadaa’tee Shems, gritei extasiado que sim, era eu mesmo. 

“Levaram-me até ela. Fui apresentado ao seu pai e ela revelou que havíamos nos casado. Todos ficaram felizes.

“Decidimos então visitar nossa velha casa. Um dos gênios de seu pai nos carregou até lá, em uma viagem de três dias. Ficamos na casa por três anos, depois retornamos, e pouco tempo depois de nossa volta minha esposa morreu. Meu sogro me ofereceu outra de suas filhas em casamento como consolo, mas eu estava desolado. Desde então, estou de luto. Essa é minha história.”

E Bolookee’a então seguiu seu caminho, andando sem destino, até morrer.

Sultaanee Waa Neeoka concluiu seu relato dizendo a Hassee’boo:

— Agora, quando você regressar à sua casa, você me matará. 

Hassee’boo ficou indignado ao ouvir aquilo:

— Eu jamais o machucaria, sob nenhuma circunstância. Por favor, me ajude a voltar para casa.

— Mandarei você de volta à sua cidade, — prometeu o rei — mas é certo que você voltará para me matar.

— Eu não seria tão ingrato! — exclamou Hassee’boo. — Juro que jamais farei mal a você.

— Então lembre-se de uma coisa. — pediu o rei das cobras — Quando estiver em sua cidade, não tome banho em lugares com muitas pessoas.

— Me lembrarei, pode deixar. — assegurou Hassee’boo.

O rei então o levou de volta para casa de sua mãe, que ficou radiante ao ver Hassee’boo vivo. 

O sultão da cidade onde vivia Hassee’boo estava muito doente. Seus conselheiros decidiram que a única cura para o soberano seria uma sopa feita com o rei das cobras.

O vizir do sultão, por razões que só ele conhecia, colocou soldados a postos em todos os banhos públicos da cidade, com instruções para capturar qualquer um que aparecesse para se banhar e tivesse uma marca na barriga.

Apenas três dias após ter voltado à sua cidade, Hassee’boo, completamente esquecido do aviso de Sultaanee Waa Neeoka, foi ao banho com outras pessoas. Acabou capturado pelos soldados e levado ao palácio, onde o vizir lhe disse:

— Leve-nos à casa do rei das cobras.

— Não sei onde fica. — respondeu Hassee’boo.

— Amarrem-no! — ordenou o vizir.

Hassee’boo foi amarrado e açoitado até suas costas ficarem em carne viva. Incapaz de suportar a dor, finalmente cedeu:

— Já chega! Eu os levarei aonde quiserem.

Então guiou os soldados até a casa do rei das cobras. Sultaanee Waa Neeoka recebeu-o com a frase:

— Não disse que você voltaria para me matar?

— E o que eu poderia fazer? — justificou-se Hassee’boo. — Veja o que fizeram com minhas costas!

— Quem lhe infligiu esse horror? — perguntou o rei.

— O vizir.

— Então não há esperanças para mim. Mas você mesmo deverá me carregar.

Durante o trajeto, o rei disse a Hassee’boo:

— Serei morto e cozido quando chegarmos à sua cidade. O vizir lhe oferecerá a primeira tigela da minha sopa, mas não a beba. Guarde-a em uma garrafa. Você deverá beber a segunda tigela, que o transformará em um grande médico. A terceira tigela será a cura para a doença do sultão. Se o vizir perguntar se você tomou da primeira tigela, confirme. Mostre a ele a garrafa com a sopa e diga: “Esta é da segunda tigela. É para você”. O vizir morrerá ao bebê-la, e assim ambos teremos nossa vingança.

Tudo ocorreu conforme o rei disse. O vizir morreu, o sultão se recuperou e Hassee’boo se tornou um grande médico, muito querido por todos.

(conto por George W. Bateman)

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

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