Um escritor francês, cujo nome complicado me fugiu, como um pássaro, da gaiola da memória, escreveu seiscentas páginas de prosa cerrada sobre a psicologia do milagre. Acha ele que os milagres são possibilíssimos, esquecendo-se, entretanto, de citar um episódio famoso, que circula, entre nós, com diversas modalidades, nos anais da anedota nacional.
D. Eufrosina estava doente do fígado, e submetia-se, uma tarde, sem o assentimento do marido, ao exame que o Dr. Abdenago Fortuna lhe exigira, quando bateram repentinamente no portão da casa.
- Minha Nossa Senhora! É meu marido! E eu não queria que ele soubesse que eu me submeti a exame médico! Como há de ser, meu Deus?!...
E repetia:
- Como há de ser, minha Nossa Senhora?!!...
As mulheres possuem, felizmente, uma qualidade providencial que falta aos homens: removem com facilidade os obstáculos mais graves, mesmo os que nos parecem, à primeira vista, irremovíveis. E foi essa virtude que socorreu, nessa tarde, D. Eufrosina, a qual, criando ânimo, pediu, aflita, ao jovem esculápio:
- Fuja, doutor! Pelo amor de Deus, fuja! Esconda-se ali, depressa!
E apontou o alto do guarda-vestidos, para onde o médico subiu, trêmulo, afim de evitar um escândalo e uma tragédia.
Dois minutos depois o chefe da casa batia à porta da alcova, onde a mulher o metralhou, logo, com uma saraivada de beijos.
- Meu amor! - exclamava a moça, abraçando-o.
- Meu amor! - plagiava o marido, correspondendo.
Sentados no leito, passaram os dois a conversar, íntimos, sinceros, carinhosos. E discutiam matéria econômica, isto é, as dificuldades financeiras do casal, quando, em certo momento, o marido aludiu a uma letra de vinte contos, que devia pagar naquele mês.
- Coitado! - soluçou a mulher. - Deixa estar, que tudo será arranjado!
E, levantando os olhos para o teto, com a fé no coração:
- Aquele que está lá em cima, lá no alto, há de nos ajudar! Tem confiança!
E assim aconteceu. Para pagamento da letra, o Dr. Abdenago, aquele "que estava lá em cima", entrou com dez!
Fonte:
Disponível em Domínio Público
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925
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