I
O meu amigo Ernesto acendera um charuto, consertara o pincenez sobre o espirituoso nariz arrebitado; acomodou-se melhor na vasta poltrona, muito fofa, em que estava sentado diante de mim e começou:
— Pois vou referir-te o grande caso a que há pouco aludi, à mesa, sem poder contar-te inteiro, pela importuna presença d’aquelas senhoras.
Afigura-te ao espírito, meu amigo, a mulher mais belamente divina e mais divinamente fascinante que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de umas adoráveis redondezas triunfantes; cútis morena, aveludada; olhos negros e brilhantíssimos, — como duas caçoulas de misteriosos filtros embriagadores; — cabelos muito pretos e ondeados, rescendentes a bom aroma de selvática baunilha; um donaire, uma soberania inteira de majestoso porte e fidalga apresentação cativante, capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento é dado formular em dias de torvas reflexões e sinistras ebriedades pecaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da mulher-única, da mulher-incomparável, o arquétipo da elevação dos dotes, a civilizada manifestação das nossas lendárias iaras amazônicas! E, a par de tudo isso, um espírito cultivado, uma ilustração perfeita de erudita, conversas sedutoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, pequeninos e iguais, feitos de puro marfim, d’uma alvura de leite, engastados em formoso coral, brilhante como os róseos lábios úmidos da microscópica boquinha sombreada d’um leve buço, — o complemento da sedução, o requinte da tentadora volúpia d’aquele delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a Marocas, a esposa do altivo general Bandeira, velho quinquagenário de elevada riqueza materialista em apetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principais bancos do Brasil.
Compreende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, enquanto a azulada fumaça deste charuto caprichosamente descreve espirais no espaço, como poderia ama-la o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda entregue a seu amor, — desde os tímidos beijos assustadiços repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janela dos aposentos desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnudamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na misteriosa liberdade pacifica da recatada alcova, alta noite, com a sua elevada estatura de lírio a erguer-se, entre neves de rendas, difundindo aromas que sabia embriagadores, irresistíveis.
Uma fascinação, aquela dupla existência de acendrado (purificado) amor. Mútuos caprichos eram satisfeitos com afã, com orgulho, como quem dedica-se a todos os sacrifícios para conquistar uma estima á força de constantes provas de louvável desinteresse.
Confesso não ter ainda visto a repetição d’aquela invejável existência d’afetuoso enlevo, — ele no declinar da vida, ela em toda a maravilhosa florescência dos seus vinte e cinco anos. Passava horas inteiras a contempla-los, absorto na admiração dessa alheia felicidade que fazia-me venturoso, — tanto é certo que uma perfeita harmonia de suave existência rica de afetos possui o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.
Muitos anos haviam já passado, desde que o matrimônio os uniu, quando Marocas fizera o seu décimo quinto aniversário, — e nem um só instante o arrependimento lhes chegara de se terem para sempre ligado por um prematuro enlace sacramental: era a sua vida atual como a fiel reprodução do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoroso tratamento de esposo.
Verdadeiramente admirável, não achas?
II
Mas houve um dia em que a primeira nuvem d’uma indisposição flutuou, soturna e lúgubre, no belo céu, puramente azul, da tranquila felicidade jubilosa de ambos.
Foi uma verdadeira desgraça suscitada por um capricho desarrazoado da formosa mulher do general. Ele tivera o arrojo de negar-se, — pela primeira vez, é certo, — a satisfaze-lo, e a Marocas sofrera em cheio no coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d’intermináveis lágrimas deslizaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente lânguidos, pisando-os com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os infelizes habituados ao pranto.
Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou, — enquanto o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos desmarcados o soalho, já meio arrependido da quase brutal violencia com que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.
Depois veio a reação, em seguida a crise histérica dos abundantes prantos silenciosos. Uns assomos de majestosa indignação, muito concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao marido memoráveis ensinamentos de justas represálias.
E a Marocas prometeu elevar-se acima de si própria, ser tão rispida como brutal havia sido o incivil do general.
Ai, meu caro amigo! Foi severa a lição! O pobre general Bandeira mais d’uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marocas, ao fim da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sozinho em seu quarto, — n’uma triste solidão de viuvez frigidíssima...
Tentou o velho militar sofrer a dura necessidade, resistir-lhe com valentia, refrea-la dominada no fundo de seu ser. Seria possível que não tivesse a força de vencer-se, ele, o ilustre soldado de quem tanto temiam os paraguaios, anos antes, nas selváticas solidões onde o nosso exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?
Mas, pouco depois, aquelas entusiastas resoluções enfraqueceram, como cai uma vela, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.
O general desejou capitular, ne extremo das forças. Um arrependimento, cujo peso a necessidade tornava insuportável, chegou-lhe após essas momentâneas resoluções de superiores resistências... impossíveis n’aquele pobre e velho espirito de homem tolamente embeiçado pelas cativantes graças da mulher.
Com efeito, capitulou.
Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os passos das escravas e uma luz baça coava-se pelos foscos vidros de lâmpadas discretas, saiu cauteloso da sua alcova e, com o coração a pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.
Á porta, parou, indeciso.
Um rumor d’água revolvida vinha pelo interstício das folhas de madeira entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e manjerona sensualmente esmagadas, diluídas na doce tepidez da agua.
Marocas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples ingenuidade descuidosa da sua tranquila innocência de mulher que em nada de mau pensa.
Quis o velho retroceder, porventura ruborizado do passo que estava dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um belo corpo, feito d’ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporizando a tépida emanação sutil das suas frescas, rosadas carnes belamente sedutoras e deliciosamente juvenis.
Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, aflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, choroso, suplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes seladas com a ardência d’uma deliciosa e suprema compensação!
Ela, porém, a Marocas, impassível e impertubável — ao tempo que envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n’um gracioso rubor de impecável donzela, — estendeu o braço para a porta e, mostrando-lhe, disse ao general estarrecido:
— Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quiser aparecer n’este quarto no caráter de esposo idolatrado.
E ele teve que sair, — ao reconhecer a impossibilidade de persistir n’uma resistência, que só poderia ser-lhe prejudicial.
III
O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um meio bastante forte, pelo qual pudesse enfim reabilitar-se perante a mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triunfantemente o salvasse da terribilíssima colisão.
Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sedas, joias e finas pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse profusamente, para amimar a caprichosa Marocas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada conseguia, senão augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.
Um caso fortuito, porém, veio livra-lo de apuros, quando o sofrimento pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora de um bloco de granito atado aos ombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das enfermidades secretas.
Aconteceu que, naquele mesmo tempo, fora o general Bandeira convidado para examinador de matemáticas, durante os exames da comissão especial da delegacia geral da instrução secundária do município da corte, — essa criação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autônoma dos nossos liceus provincianos, reduzindo-os às simples e modestas proporções de insignificantes escolas de primórdios científicos e literários, destituídos do mínimo valor perante as academias superiores do Império...
Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.
O general aceitara o convite com extraordinário gáudio do delegado especial, a quem eram familiares os inflexíveis rasgos de rude catonismo do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradições de severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Liceu, no dia marcado, quando — oh! admiração! — apareceu-lhe no quarto a mulher, a Marocas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o colo, por cima das mais apeteciveis redondezas túrgidas que é possível imaginar.
Trêmulo, o velho, que nesse mesmo instante havia acendido um charuto, esqueceu-se do lado em que lhe transmitira a luz do fósforo e enterrou-o desajeitadamente na boca, em sentido oposto àquele de que deveria servir-se para fumar satisfatoriamente.
O contato do fogo na língua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu entre ele e a Marocas uma distância considerável.
A Bandeirinha sorriu do ridículo do acontecimento; mas, cravando logo os dentes nos diminutos lábios vermelhos como papoulas, conservou a necessária seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espaço que aproximava-a dele.
Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:
— Vai hoje examinar matemáticas, general?
— Vou... sim...
— Pois então, este moço irá fazer exame por mim...
— ?...
— Ouviu...?
— Sim.
— Veja lá como se porta. As matemáticas não são o meu forte. Eu não estou muito habilitada.
E, sem atender ao general, que tentava protestar por aquele assédio, por semelhante reclamação de um escândalo impossível á sua severidade, a bela Marocas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do penteador, difundindo no quarto um cheiro inominado de roupas brancas, essências boas e rijas carnes feminís e jovens.
IV
Chegando ao Liceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe entregara a mulher:
Antonio da Silva Laranjeira
Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Laranjeira. Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pálido, de cabelos à quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na derme. Que era ele próprio, sim senhor. E uma voz fanhosa, cheia de bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena frase afirmativa, solicitando ali, em sua exagerada afabilidade, a complacência do examinador.
O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela comoção, mal resistindo ao desejo de esbofetear sem clemência aquele vadio que tivera o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marocas, para induzi-lo ao crime de uma indignidade — arrasta-lo a quebrar os seus votos de severa justiça de indomável rispidez com os estudantes.
Daí a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Laranjeira, cuja prova escrita não poderia ser pior. Escusado é dizer-te que o pequeno espezinhou a ciência com toda a coragem de um iniciante ignorante. Como, porém, desempenhava ali as altas funções de representar a bela Marocas, à falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgência dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.
Ao regressar à casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando apareceu-lhe a esposa, sempre sedutora e rescendente a gratos perfumes finíssimos, Couro da Rússia, e jasmim do Cabo.
— Então? — perguntou ela meio-rindo.
— Aprovado, afirmou o general deixando pender a cabeça, desfalecido, — talvez envergonhado da sua fraqueza, corando porventura de não haver oposto resistência á tentação.
— Oh! belo! belo! — gritou a Marocas, lançando-se-lhe ao pescoço, beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto — á ponta do nariz — os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas que ornavam o penteador sobre o peito.
Ele abriu os braços, recebeu-a como dentro de si próprio, num grande amplexo nervoso — a manifestação penúltima do seu intensíssimo desejo de reconciliar-se com a mulher.
Ela impelia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os lábios estendidos em titubeante murmúrio voluptuoso.
Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estátua. Imóvel, silencioso! Sá as pálpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas lágrimas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.
— Que tens? inquiriu ela, assustada, beijando-o sobre uma orelha, amimada e tentadora, infantilizando a voz, que logo tomou dulcíssima harmonia.
— Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escândalo, aquela aprovação!
— Ah! volveu ela, abraçando-o com força, reconquistando-o, reconduzindo-o para o sofá, espiritualizada de prazer, sorrindo estranhamente.
E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do esposo, — caíndo ambos para o sofá hospitaleiro — murmurou-lhe ao ouvido, entre um rugeruge de roupas:
— O que é bom custa caro!
Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman
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