quarta-feira, 12 de abril de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Coração de vidro)

 BARETÉU CARCUMÉ estava em coma há exatos oito meses. Nesse tempo, a mulher dele, uma beldade, a Tampalônia, um pedaço de mau caminho de dar água em boca de defunto, recém entrada na casa dos vinte e cinco anos, extremamente honesta e dedicada, praticamente se mudara de mala e cuia para o hospital. E ali ficara, colada à cabeceira do moribundo, dia e noite. Não arredava pé nem para as refeições.

Amava o marido de verdade. Nutria por ele um amor sem limites, incondicional, sentimento hoje em dia bastante escasso e até difícil de encontrar na maioria dos casais. Belo dia, Baretéu Carcumé resolveu voltar à vida e, como num passe de mágica, pimba, acordou. A primeira coisa que fez foi um sinal para que a enfermeira mandasse chamar a sua mulher, no que foi prontamente atendido.

Havia, no hospital, um tal de doutor Tribulim Barfar, médico da equipe de plantão que, desde o ingresso de Baretéu na unidade, não saia de perto do sujeito. Com aquela história de monitorar o paciente, de meia em meia hora, dava umas escapulidas do pronto socorro, onde atendia as emergências só para desfrutar momentos de agradável prazer ao lado da graciosa cara metade que parecia ter caído do céu.

Embora tivesse o compromisso ético de salvar vidas, Tribulim Barfar passou a desejar, interiormente, que o agonizante fosse para os quintos e deixasse o caminho livre. Única forma de atacar a bela presa em nome da tristeza que sentiria pela perda do ente querido, bem ainda apresentar as condolências à enlutada e, de lambuja, doar seu ombro amigo à viúva desprotegida e frágil. Porém, com o retorno inesperado do sujeito ao mundo dos vivos, o doutor Tribulim pressentiu que suas chances de dar o bote no docinho de coco caiam por terra.

Todavia, se manteria em sua posição, decidido a ir em frente e conquistar aquela fêmea maravilhosa, custasse o que custasse. Não desistiria, jamais. De forma alguma. Mesmo que precisasse dar uma guinada no quadro clínico e voltar com o filho da mãe do Baretéu para o coma. Tampalônia, ao saber pela enfermeira que o marido voltara, tomou um banho, se perfumou, botou uma sainha bem curta, como ele gostava, e se aproximou, sorridente, o rosto banhado em felicidade.

Sua alegria era tanta e tamanha, tamanha e tanta, que alguma coisa solta no ar a tornava mais elegante e pecaminosamente altaneira e garbosa, embora por dentro o coraçãozinho tão jovem estivesse cheio de dor:

— Meu amor, graças a Deus. Pedi tanto a Nossa Senhora Aparecida. Ela ouviu as minhas preces...

Baretéu soltou um longo suspiro e balbuciou, meio que desacorçoado:

— Em compensação houve rejeição às minhas...

— Não entendi, meu bem. Seja mais explícito.

No que falava, a mulher se sentou na cama e abraçou o marido com carinho e ternura:

— Engraçado. – lembrou ele. – Durante todos esses anos você esteve a meu lado...

— E sempre estarei...

— Quando minha empresa faliu, um mês depois que nos conhecemos...

—... Não foi culpa sua. Seu sócio te roubou.

— Não importa. Lembra?

— Sim, amor!

— Só você ficou e me apoiou.

— E sempre o farei, meu príncipe.

Antes de prosseguir Baretéu fechou os olhos e ficou algum tempo calado, como se procurasse recobrar as forças:

— Na época que me prenderam por não pagar a pensão à minha ex-mulher, você também estava comigo e me levantou a moral.

— Fiz das tripas coração para que não lhe faltasse nada na cadeia.

— É verdade. E olhe só: foram setenta e oito dias...

— Setenta e oito? Nunca me passou pela cabeça anotar o tempo. Agora, meu amado, esquece desses problemas.  Vamos falar de sua saúde, da sua recuperação. Olhe em volta. Você está vivo. Isso importa.

Baretéu, contudo, não parecia disposto a abandonar aquele assunto relativamente chato, sendo discutido, inclusive, numa hora tão imprópria. Ele literalmente acabava de voltar à vida plena:

— Quando perdemos a mansão e tivemos que nos sujeitar àquela espelunca de segunda, você se mostrou forte e segura, e, para meu espanto, seguiu a meu lado.

Fez uma pequena pausa e continuou:

— Lembro como se fosse hoje. Você era uma quase adolescente, acabara de completar dezenove anos, mas não, você ficou e se mostrou fiel, companheira, digna, um amor de mulher e de pessoa.

— Jurei perante o altar, esqueceu?

— É certo.

— Te amo, meu gatinho!

— Não duvido. Aliás, nunca coloquei essa questão em controvérsia, embora toda a minha família me alertasse que você, na flor da juventude e, tendo em vista a nossa diferença de idade, me poria um belo par de chifres. Afinal, já passei dos sessenta... não sou mais um garotão.

Tampalônia se fechou por inteira num semblante entristecido:

— Jamais o trairia. Nem em pensamentos. E os seus sessenta não me assustam... você ainda dá conta do recado. Me faz ver estrelas em plena noite escura...

— Eu sei...

— Tem um doutorzinho aqui que está dando em cima de mim...

— É mesmo? Quem é ele?

— Um tal de Tribulim Barfar.

— Trampolim?

Risos:

— Não, amor, Tribulim.

— É bonito?

— Não tanto quanto você.

— Já se declarou?

Tampalônia se trancou submissa numa carranca momentânea:

— Nem precisou. Saquei desde a primeira vez em que entrou aqui.

— Sei, sei, mas voltando a nós dois. Desde quando descobrimos a enfermidade e a partir do instante em que fiquei com todos esses problemas de saúde, você, igualmente, não abandonou a sua posição de me dar força e coragem.

— Na alegria e na dor, na saúde e na doença... eu fiz essa promessa...

— Sabe de uma coisa?

Os olhos da mulher se encheram de lágrimas. Podia se ver estampados neles, a mais pura e sublime presença da magia encantada em toda a sua formosura e obstinação:

— Diga, meu amado...

Baretéu Carcumé cerrou os olhos por alguns breves segundos. Antes de abri-los e depois de soltar alguns traques sonoros fedendo a carniça, concluiu o que lhe ia à mente:

— Conclua o que pretendia dizer, meu lindo. Sou toda ouvidos...

— Seguinte: acho que você, apesar de moça direita e fielmente dedicada, boa esposa e inimitável amante -, sua presença, ao meu lado... não me leve e nem entenda de forma errada o que direi a seguir. Nesse tempo todo em que estive ausente, cheguei à conclusão que o nosso casamento me sufoca. Você me asfixia com um manto negro de grandissíssimo e profundo azar. Por favor, pegue as suas tralhas e desinfete. Não quero nunca mais ver a sua cara. Sem mais perguntas, pé frio das profundas, fora, fora, foraaaaaa...  

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

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