SEMPRE QUE SE ENTREVISTAVA com seu psiquiatra, Taborda falava de seus problemas, de suas angústias e aflições e acabava por tecer longos comentários a respeito do pequeno Bob, um menino de dez anos. A grande preocupação do paciente, não se prendia aos problemas pessoais que enfrentava. Seus medos e temores se faziam outros: estavam voltados para o bem estar do tal garoto, que vivia com a mãe, uma jovem solteira e desempregada.
Taborda, por sua vez, morava sozinho e tinha a senhora sua mãe em idade bastante avançada. Logo a velhinha completaria noventa e oito anos e ele, passava da casa dos sessenta. Se viesse a faltar, de repente, o menino Bob, coitado, ficaria desamparado, embora morasse com a genitora. Sem ele por perto, imaginava que o piá (garoto) poderia cair em mãos de estranho, o que certamente transformaria a sua vida num verdadeiro inferno.
Somente em pensar nessa hipótese, Taborda ficava temeroso e bastante preocupado com seu futuro. Não queria nada de ruim para o pequeno. O infante não era seu filho, mas o amava como se fosse. Por essa razão, trabalhava duro em dois empregos distintos. E tudo o que ganhava, revertia para melhorar as condições de Bob, que perdera o pai muito cedo num acidente de moto e, desde então, ficara sob a guarda e responsabilidade da Eunice Fininha, a mãe, uma jovem de vinte e nove anos.
Taborda não tinha caso com essa moça. Ajudava-a com dinheiro, roupas, alimentos e remédios, por ter bom coração. Agia como um bom samaritano, sem pedir ou querer nada em troca. O doutor Frestrincheiquime, psiquiatra de Taborda, de longos janeiros, sabia de toda a história relacionada ao menino. E mais que médico da criatura, se transformara em seu amigo particular. Dessa forma, quando chegava ao consultório, o doutor o ouvia pacientemente, sem interrupções.
De vez em quando, a fim de não cair no marasmo, ou correr o risco de “pegar no sono”, fazia uma pergunta nova (embora soubesse de antemão qual seria a resposta), objetivando passar o tempo e a coisa não ficar piegas demais. Numa dessas entrevistas, Taborda segredou ao psiquiatra:
— Precisa ver que maravilha. Bob já sabe navegar na Internet. Fez um e-mail para mim. Imagine, Frestrincheiquime. Um e-mail. E eu, que mal sei ligar o computador. (Risos). Esse moleque vai longe.
— Você comentou, na última vez em que esteve aqui, que Bob é bom em matemática?
— Perfeito. Nasceu com o dom dos números...
— Como foi mesmo a história dos camelos?
— Três irmãos discutiam acaloradamente sobre como dividiriam trinta e cinco camelos entre si. Um teria direito apenas a metade, o outro a terça parte e o mais novo, ficaria com a nona parte. Trinta e cinco divididos por dois, dá dezessete e meio. A terça parte e a nona parte de trinta e cinco, também não são exatas. (*)
Taborda levantou da cadeira, acendeu um cigarro, foi até o envidraçado. Olhou demoradamente para a cidade, quarenta e cinco andares abaixo de seus pés. Após algumas tragadas retornou ao seu assento e indagou: como proceder? Saberia fazer essa conta, meu caro doutor?
— De forma alguma. Tenho aversão aos números, Taborda.
— Faço minha as suas palavras. Confesso que não sei juntar dois mais dois. Bob, ao contrário, nossa! Bob fez a divisão na hora, num abrir e piscar de olhos... eu e a mãe dele, a Eunice Fininha, ficamos paralisados, como dois bobocas diante de uma “resma de leões famintos” prestes a nos devorar sem piedade.
O médico insistiu batendo na mesma tecla de todas as consultas:
— Gostaria como já lhe pedi trocentas vezes, conhecer o pequeno Bob.
— Por certo. Não faltará oportunidade, meu caro Frestrincheiquime. Asseguro que não faltará oportunidade...
O tempo continuou passando. E as sessões acontecendo, sem mudanças no quadro. Tudo corria às mil maravilhas. Contudo, toda vez que o esculápio insistia em conhecer o pequeno Bob, Taborda saia pela tangente, desconversava, mudava de assunto.
O doutor, diante disso, passou a desconfiar. Estava claro. Havia alguma coisa errada entre seu paciente e o tal do Bob. Precisava tirar a limpo e pôr às dúvidas às claras. Ligou para a mãe dele. Dona Espingardina generosamente recebeu o galeno com um abraço fraterno e o convite para se acomodar na sala e tomar uma xícara de café que ela havia mandado a empregada fazer. Por telefone, um dia antes, o doutor combinara que chegaria após a saída de Taborda para o trabalho. Taborda não morava com a mãe.
Residia próximo dela, duas ruas abaixo para ser mais preciso. Porém, Taborda não seguia para a empresa sem antes passar pela residência da anciã, tomar o dejejum com ela, pedir a benção e dar um beijo de bom dia. Assim foi:
— A que devo sua amável visita, doutor? Algum problema com meu filho?
O clínico se abriu num sorriso alegre e cativante:
— Em absoluto, senhora. Só queria lhe dar um alô e ver como andam as coisas.
Dona Espingardina, entretanto, não engoliu a explicação:
— Doutor, pelos meus anos de experiência, tenho plena convicção de que o senhor não veio até aqui exclusivamente para uma visita cordial. Não tenho seu estudo, nem desfruto da sua visão de capacidade, mas posso ver em seus bugalhos que esconde um segredo. Gostaria que se abrisse comigo. Algo errado com meu Tabordinha?
— A senhora tem toda razão, dona Espingardina. Vim aqui com outro propósito. Conhecer o pequeno Bob...
A velhota se espantou com o nome e encarou o doutor além das lentes grossas que ele usava:
— Bob? Quem é Bob, doutor?
O doutor Frestrincheiquime passou, então, a relatar em breves palavras, as seções com Taborda. Finalizou explicando o capítulo Bob:
— Não sei quem é essa tal de Eunice Fininha e, menos ainda, o tal do Bob, doutor. Meu filho nunca comentou. Tem certeza de que é esse o nome da beldade e do moleque? Creia, meu nobre, se meu Tabordinha tivesse um caso com alguém, eu seria a primeira a tomar conhecimento. Ele nunca me escondeu coisa alguma.
O médico concluiu que a velhota literalmente situada no tempo e no espaço, se fazia de sonsa. Mentia descaradamente. Por óbvio, escondia sujeira muito séria de seu rebento. O que, nessa altura do campeonato? Possivelmente algo que não pudesse ser revelado por um entrave qualquer que ele desconhecia. Aceitou uma segunda rodada de café, papeou um pouquinho mais. Falou de trivialidades e, com uma desculpa bem convincente, minutos depois, deu por encerrada a entrevista.
Na seção seguinte, depois de um longo papo, nele incluindo Bob, evidentemente Frestrincheiquime se mostrou austero a ponto de enroscar os fios de seu bigode com os de Taborda:
— Você é meu paciente faz cinco anos. Mais que isso, se tornou meu amigo. Amigo e parceiro. Precisamos agora, esclarecer, de uma vez por todas, um ponto obscuro que até este momento tem estado fora de foco...
— Que ponto obscuro é esse, meu amigo. O que é que está fora de foco?
— Bob. Quero conhecer o Bob.
Taborda ficou sério e pensativo:
— Não chegou a hora, ainda. No momento...
—...Taborda, esta é a hora. Traga Bob aqui para que eu o conheça, ou darei ordens expressas à senhorita Xicória, minha secretária, para que não agende suas próximas consultas. Ademais, lembre-se de um detalhe: estamos terminando o mês e você tem consciência que careço renovar o atestado de capacidade mental para a sua empresa. Farei isso se você trouxer Bob até mim. Fui claro?
— Claríssimo. Falo tanto no menino esses anos todo e você nunca o viu...
— Então?
— Que tal na sexta?
— Para mim está ótimo.
— Combinado.
— A que horas?
— As quatro, está legal para você?
— Perfeito.
No dia e hora aprazados, a bela senhorita Xicória interfonou anunciando a chegada de Taborda.
Antes de mandá-lo entrar no consultório, Frestrincheiquime indagou, pelo interfone, se o paciente se fazia acompanhar de alguém:
— Ele está só, doutor.
— Senhorita Xicória, não há uma criança com ele, digo, um menino?
— Não, doutor. A propósito, acho que está acontecendo alguma coisa de estranho com o senhor Taborda...
— Exatamente o quê? — Procure ser mais objetiva...
— Ele está conversando animadamente com uma pessoa ao seu lado...
— Algum paciente à minha espera?
— Não, doutor, o seu Taborda é o derradeiro.
— Então com quem ele bate papo, senhorita Xicória?
— O senhor não vai acreditar. Ele está falando e gesticulando sozinho, como se tivesse alguém ao lado.
A secretária imprimiu ao diálogo uma breve pausa e continuou:
— Doutor, o senhor está sentado?
— Claro que estou sentado, senhorita Xicória. O que está havendo?
— Seu Taborda se levantou, pegou dois copinhos de café e ofereceu um ao invisível da cadeira... espere, doutor. Meu Deus! Ele agora está vindo em minha direção...
— Ele quem, senhorita Xicória? O Taborda ou o invisível que o acompanha?
Sem entender as palavras do seu patrão, a moça se abriu, chorosa:
— Doutor, fala sério! Isso é algum tipo de brincadeira?
— Claro que não, senhorita Xicória. Olha, me escuta. Aja com calma e cautela. Respire. Conte até mil. Não demonstre medo. Sobretudo, não deixe o Taborda perceber que fala comigo. Rápido, saia da sua mesa, vá até o banheiro, leve o interfone debaixo da blusa. Em lá chegando, dê descarga no aparelho e se jogue pela janela.
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(*) Este problema encontra-se no livro “O homem que calculava”, de Malba Tahan.
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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