sábado, 2 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 17


Clarice da Costa (Crônicas) 1

Resumo da vida

Tudo se resume à "você mora longe". Queria saber o que fariam as pessoas se estivessem num período em que o meio de transportes eram as charretes. Se bem que sem internet teriam de qualquer forma sair da comodidade de suas casas. Sem falar que teriam que pedir perdão ao padre por terem beijado na boca. Só fico pensando como seriam os nudes daquela época. Na verdade nem haveria devido o fato do pudor. A cena que mais imagino é a senhorita ouvir ela ser chamada de "delícia". 

Ela tira sua luva e bate na cara do cavalheiro por desrespeito a sua honra. Também pudera comparar mulher a comida? Porque pra ser delícia ela deveria ter algum sabor! Estamos na era tecnológica e muitas coisas parecem decair. Cadê o romantismo? Cadê a coragem de se arriscar por amor? Cadê a atitude? Cadê o olhar e o gesto respeito? E há quem reclame do fato de se estar sozinho. 

O celular tem sido mais importante que o contato físico! Que gosto tem de beijar pelo celular? Dá para abraçar um amigo ou um familiar? O absurdo disso tudo é as pessoas acreditarem que Deus tem celular e vai ficar incomodado em você não enviar aquelas mensagens fofas de compartilhamento. Nossa, a minha sorte não está no trevo de quatro folhas! Eu não compartilhei a última mensagem para as 20 pessoas que eu conheço. Será que é por isso que eu não arrumo namorado? 

Deficiente No Supermercado

- O que esta garota faz aqui? 

- Quem é ela? 

- Será que ela consegue? 

- Ela vai é derrubar tudo. 

Pensamentos de quem acha que todo deficiente é incapaz. Temos as nossas limitações, mas não somos diferentes de qualquer pessoa. Eu me chamo Clarisse Da Costa, sou poetisa e artesã em Biguaçu, no estado de Santa Catarina, recentemente estudante de designer gráfico. 

Aprendi hoje que eu não sou deficiente, tenho minhas limitações, mas deficiente é aquele que olha torto e acha que sou incapaz. Peguei a cesta, coloquei as coisas que eu queria e fui até o caixa sem deixar alguma coisa cair. Pode parecer bobo, mas isso me deixou com a certeza de que eu posso muito mais que penso. 

Quando eu escrevo, eu viajo pelos cenários de cada história e de certa forma esses pequenos detalhes da vida me fazem viajar. Crer que sou capaz é fundamental para eu sempre seguir em frente. E vamos pensar desse jeito... É um soco na cara de quem não tem consideração pelo deficiente físico. 

Eu passava no corredor do supermercado e as pessoas pareciam perdidas enquanto eu estava no lugar certo. Elas não sabiam se davam passagem pra mim ou se esperavam eu pedir. Chego em casa, tomo o meu café. E aposto que aquelas pessoas ainda estão se perguntando. 

Fonte: Samuel da Costa

Fernando Namora (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol.7) I


PILOTAGEM

E os meus olhos rasgarão a noite;
E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
Compreenderá, então, a sua inutilidade;
E todos os sinos que alimentavam insônias
hão-de repetir as horas mortas
só para os ouvidos da torre;
E os outros ruídos abafar-se-ão no manto negro da noite;
E a mão alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverá de novo;
E os meus braços se erguerão transfigurados
para o abraço virgem dos teus braços
que andava perdido, sem dar fé deste seu reino;
E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ão;
E o silêncio virá cheio de promessas
que não se cansaram na viagem;
E todos os povos de Babel
com as riquezas que há no mundo
virão festejar a paz em minha honra;
E os caminhos se abrirão
para os homens que seguirem de mãos dadas:
O sangue derramado de Cristo
terá finalmente significação,
e da inútil cruz do martírio
se erguerá o pendão da vitória;
E assim terão começo
os sonhados dias dos meus dias!

TODOS OS CAMINHOS ME SERVEM

Todos os caminhos me servem.
Em todos serei o ébrio
cabeceando nas esquinas.
Uma rua deserta e o hálito
das pessoas que se escondem,
uma rua deserta e um rafeiro
por companheiro.

Ó mar que me sacode os cabelos
que mulher alguma beijou,
lágrimas que os meus olhos vertem
no suor dos lagares,
que uma onda vos misture
e vos leve a morrer
numa praia ignorada.

POR TODOS OS CAMINHOS DO MUNDO

A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
pelo mundo,

por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim noturno,

ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.

Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.

Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.

Não sei caminhos de cor.

TERRA

Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.

Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os Rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.

Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

POEMA PARA ILUDIR A VIDA

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.

O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

FOI HOJE UM DOMINGO BONITO

Foi hoje um domingo bonito, Cacilda!
A sanfona correu o lugar de lés a lés.
– Quem deu pelas histórias dos velhos?
Ninguém.
Quem ouviu a fome do gado, preso no curral?
Ninguém.
Quem espantou as galinhas, debicando nos cachos?
Ninguém.
Na venda, houve surra, abriram cabeças.
E farnéis na charneca e dança
no sobrado da tua avó.
O brasileiro trouxe aquela caixa que tem música
e modas de lá.
Tudo foi bonito, Cacilda!
Vem banhar-te na alegria
das penas adormecidas.
Deixa o amanhã.

UM SEGREDO

Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.

Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamos-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
tingida ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.

Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.

Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.

Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.

Fonte:
Fernando Namora. Mar de Sargaços. 
Coimbra: Atlântida, 1940.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

José Feldman (Álbum de Trovas) 16


Leandro Gomes de Barros (As Proezas de um Namorado Mofino)


Sempre adotei a doutrina
Ditada pelo rifão,
De ver-se a cara do homem
Mas não ver-se o coração,
Entre a palavra e a obra
Há enorme distinção.

Zé-pitada era um rapaz
Que em tempos idos havia
Amava muito uma moça
O pai dela não queria...
O desastre é um diabo
Que persegue a simpatia.

Vivia o rapaz sofrendo
Grande contrariedade
Chorava ao romper da aurora
Gemia ao virar da tarde
A moça era como um pássaro
Privado da liberdade.

Porque João-mole, o pai dela
era um velho perigoso,
Embora que Zé-pitada
Dizia ser revoltoso,
Adiante o leitor verá
Qual era o mais valoroso.

Marocas vivia triste
Pitada vivia em ânsia,
Ele como rapaz moço
No vigo de sua infância,
Falar depende de fôlego
Porém obrar é sustância.

Disse pitada a Marocas,
Eu preciso lhe falar
Já tenho toda certeza,
Que é necessário a raptar,
À noite espere por mim
Que havemos de contratar.

Disse Marocas a Zezinho:
Papai não é de brincadeira,
Diz Zé-pitada, ora esta!
Deixe de falar besteira,
Você pode ver-me as tripas,
Porém não verá carreira.

Diga a que hora hei de ir,
Eu dou conta do recado
Inda seu pai sendo fogo,
Por mim será apagado,
Eu juro contra minh’alma
Que seu pai corre assombrado.

Disse Marocas, meu pai
Tem tanta disposição
Que uma vez tomou um preso
Do poder de um batalhão,
Balas choviam nos ares,
O sangue ensopava o chão.

Disse ele, eu uma vez
Fui de encontro a mil guerreiros,
Entrei pela retaguarda,
Matei logo os artilheiros,
Em menos de dez minutos
O sangue encheu os barreiros.

Disse Marocas, pois bem
Eu espero e pode ir,
Porém encare a desgraça,
Se acaso meu pai nos vir,
Meu pai é de ferro e fogo,
É duro de resistir.

Marocas não confiando
Querendo experimentar,
Olhou para Zé-pitada
Fingindo querer chorar,
Disse meu pai acordou,
E nos ouviu conversar.

Valha-me Nossa Senhora!
Respondeu ele gemendo,
Que diabo eu faço agora?!...
E caiu no chão tremendo,
Oh! Minha Nossa Senhora!
A vós eu me recomendo

Nisso um gato derrubou
Uma lata na dispensa,
Ele pensou que era o velho,
Gritou, oh!, que dor imensa!.
Parece qu’stou ouvindo
Jesus lavrar-me a sentença.

A febre já me atacou,
Sinto frio horrivelmente.
Com muita dor de cabeça,
Uma enorme dor de dente,
Esta me dando a erisipela,
Já sinto o corpo dormente.

Antes eu hoje estivesse
Encerrado na cadeia,
De que morrer na desgraça,
E d’uma morte tão feia,
Veja se pode arrastar-me,
Que minha calça está cheia.

Por alma de sua mãe,
E pela sagrada paixão,
Me arraste por uma perna
E me bote no portão,
A moça quis arrastá-lo,
Não teve onde pôr a mão.

Ela tirou-lhe a botina,
Para ver se o arrastava,
Mas era uma fedentina,
Que a moça não suportava,
Aquela matéria fina
Já todo o chão alagava.

Disse a moça: quer um beijo?
Para ver se tem melhora?
Ele com cara de choro,
Respondeu-lhe, não, senhora,
Beijo não me salva a vida,
Eu só desejo ir-me embora.

Então lhe disse Marocas,
Desgraçado!... eu bem sabia,
Que um ente de teu calibre,
Não pode ter serventia.
Creio que fostes nascido
Em fundo de padaria.

Meu pai ainda não veio
Eu hoje estou sozinha,
Zé-pitada aí se ergueu,
E disse, oh minha santinha!
A moça meteu-lhe o pé,
Dizendo: vai-te murrinha!

E deu-lhe ali uma lata,
Dizendo: está aí o poço,
Você ou lava o quintal
Ou come um cachorro ensosso,
Se não eu meto-lhe os pés
Não lhe deixo inteiro um osso.

Disse ele, oh! meu amor!
O corpo todo me treme,
Minha cabecinha está,
Que só um barco sem leme,
Parece-me faltar o pulso,
O Anjo da Guarda geme.

Então a moça lhe disse:
O senhor lava o quintal
Olhe uma tabica aqui!...
Lava por bem ou por mal,
Covardia para mim,
É crime descomunal.

E lá foi nosso rapaz
Se arrastando com a lata,
A moça ali ao pé dele,
Lhe ameaçando a chibata,
Ele exclama chorando
Por amor de Deus não bata.

Vai miserável de porta
Quero já limpo isso tudo,
Um homem de sua marca
Pequeno, feio e pançudo,
Só tendo sido criado
Onde se vende miúdo.

Disse o Zé quando saiu:
Eu juro por Deus agora,
Ainda uma moça sendo
Filha de Nossa Senhora,
E olhar para mim, eu digo:
Desgraçada, vá embora.

Leandro Gomes de Barros (1865 - 1918)

É considerado como o primeiro escritor brasileiro de literatura de cordel, tendo escrito aproximadamente 240 obras. No seu tempo, era cognominado "O Primeiro sem Segundo", e ainda é considerado o maior poeta popular do Brasil de todos os tempos, autor de vários clássicos e campeão absoluto de vendas, com muitos folhetos que ultrapassam a casa dos milhões de exemplares vendidos. 

Leandro Gomes de Barros, paraibano nascido em 1865, na Fazenda da Melancia, no Município de Pombal, é considerado o rei dos poetas populares do seu tempo. Foi educado pela família do Padre Vicente Xavier de Farias, (1823-1907), proprietários da fazenda, e dos quais era sobrinho por parte de mãe. Em companhia da família "adotiva" mudou-se para a Vila do Teixeira, que se tornaria o berço da Literatura Popular nordestina, onde permaneceu até os 15 anos de idade tendo conhecido vários cantadores e poetas ilustres.

Do Teixeira vai para Pernambuco e fixa residência primeiramente em Jaboatão, onde morou até 1906, depois em Vitória de Santo Antão e a partir de 1907 no Recife onde viveu de aluguel em vários endereços, imprimindo a maior parte de sua obra poética no próprio prelo ou em diversas tipografias. Vale a pena transcrever o aviso no final de um poema, A Cura da Quebradeira, que demonstra suas constantes mudanças e o grande tino comercial:
"Leandro Gomes de Barros, avisa que está morando em Areias, Recife, e que remeterá pelo correio todos os folhetos de suas produções que lhe sejam pedidos”.

Sua atividade poética o obriga a viajar bastante por aqueles sertões para divulgar e vender seus poemas e tal fato é comentado por seus contemporâneos, João Martins de Ataíde e Francisco das Chagas Baptista:

"Voltando João Athayde
De Vitoria a Jaboatão
Quando chegou em Tapéra
Que saltou na estação
Encontrou Leandro Gomes
Entraram em conversação"

"Estava em Lagoa dos Carros,
O grande Chagas Batista,
Quando trouxeram-lhe à vista
Leandro Gomes de Barros,
que para comprar cigarros
tinha descido do trem (...)"

Foi um dos poucos poetas populares a viver unicamente de suas histórias rimadas, que foram centenas. Leandro versejou sobre todos os temas, sempre com muito senso de humor. Começou a escrever seus folhetos em 1889, conforme ele mesmo conta nesta sextilha de A Mulher Roubada, publicada no Recife em 1907:

Leitores peço-lhes desculpa
se a obra não for de agrado
Sou um poeta sem força
o tempo me tem estragado,
escrevo há 18 anos
Tenho razão de estar cansado.

Caboclo entroncado, de bigode espesso, alegre, bom contador de anedotas: este é o retrato que dele faz Câmara Cascudo em Vaqueiros e Cantadores. Casou-se com Venustiniana Eulália de Barros antes de 1889 e teve quatro filhos: Rachel Aleixo de Barros Lima, Erodildes (Didi), Julieta e Esaú Eloy, que seguiu a carreira militar tendo participado da Coluna Prestes e da Revolução de 1924. De Leandro só possuímos fotos de meio-busto e uma de corpo inteiro, que colocava em seus folhetos para provar a autoria de seus versos; de sua família, o que ficou para a história foram os folhetos assinados com caligrafia caprichada, sobretudo os de Rachel.

Na crônica intitulada Leandro, O Poeta, publicada no Jornal do Brasil em 9 de setembro de 1976, Carlos Drummond de Andrade o chamou de "Príncipe dos Poetas" e assinala:

"Não foi príncipe dos poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro". E diz mais: "Leandro foi o grande consolador e animador de seus compatrícios, aos quais servia sonho e sátira, passando em revista acontecimentos fabulosos e cenas do dia-a-dia, falando-lhes tanto do boi misterioso, filho da vaca feiticeira, que não era outro senão o demo, como do real e presente Antônio Silvino, êmulo de Lampião". 

Mas não foi só Drummond, nosso poeta maior, que reconheceria em Leandro a majestade dos versos. Em vida era tratado por seus colegas como o poeta do povo, o primeiro sem segundo (Athayde) e verdadeiro Catulo da Paixão cearense daqueles ásperos rincões (Gustavo Barroso).

Após o seu falecimento, em 4 de março de 1918, no Recife, de gripe espanhola, o poeta e editor João Martins de Ataíde, em seu folheto A Pranteada Morte de Leandro Gomes de Barros, escreveu:

Poeta como Leandro
Inda o Brasil não criou
Por ser um dos escritores
Que mais livros registrou
Canções não se sabe quantas
Foram seiscentas e tanta
As obras que publicou.

Fonte:

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Trova 302 - Matusalém Dias de Moura (Vitória/ES)

Fonte: Facebook do Trovador

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 4


MODO DE SER FELIZ

MOTE:
– A gente nem sempre alcança,
o que a esperança prediz,
porém... viver de esperança
é um modo de ser feliz…
João Freire Filho

GLOSA:
– A gente nem sempre alcança,
tudo aquilo que sonhou,
mas a vida é uma criança
que recém desabrochou.

Queremos realizar
o que a esperança prediz,
e na vida colocar
um novo e lindo matiz.

Todos querem segurança,
querem ter os pés no chão,
porém...viver de esperança
faz feliz o coração.

O coração satisfeito,
realizado nos diz:
ter esperança no peito,
é um modo de ser feliz...
________________________

PARA QUE ME RECORDES

MOTE: (Quadra)
Para que tu me recordes
e, à recordação, sorrias,
eu te deixo com meus versos
minhas tristes alegrias...
Maria Elena

GLOSA:
Para que tu me recordes,
para que nunca me olvides,
deixo, em meus versos, acordes
de amor, pra que não revides!

Para que fiques feliz
e, à recordação, sorrias
foi que esses versos eu fiz,
esquecendo as nostalgias!

Meus anseios de universos,
como uma linda canção,
eu te deixo com meus versos
e mais o meu coração!

Para sempre eu viverei
feliz, em minhas poesias,
e com elas lembrarei
minhas tristes alegrias...
________________________

SAUDADES DE NINGUÉM...

MOTE:
Toda tristeza é dorida,
dói mais, no entanto, a de quem
enfrenta a tarde da vida
sem saudades de ninguém...
José Tavares de Lima

GLOSA:
Toda tristeza é dorida,
e a dor, provocando o pranto,
canta, como em despedida,
o mais cruel acalanto!

Toda a dor, nos faz sofrer,
dói mais, no entanto, a de quem
não encontra em seu querer,
o querer de um outro alguém.

É triste ser esquecida...
Pobre da alma que, sozinha,
enfrenta a tarde da vida
e só, na noite se aninha!

Machuca o sentir saudade,
mas a dor vai mais além
se vivermos na verdade
sem saudades de ninguém…
_______________

CADÊNCIA DA ESPERANÇA

MOTE:
Acalanto é som que invade,
voz suave que descansa,
no compasso da saudade,
na cadência da esperança!
Leda Costa Lima

GLOSA:
Acalanto é som que invade,
e que entra na alma da gente,
é ilusão... realidade...
é tão lindo... É diferente...

Belo, como a voz do vento,
voz suave que descansa,
partindo do firmamento
as folhas, então, balança!

Ele vem sem ansiedade,
vem chegando de mansinho
no compasso da saudade,
num bailado de carinho!

E tendo a força do verso
e o ritmo de nova dança
coloca todo o universo
na cadência da esperança!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas VI. 
In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. 
http://www.portalcen.org. abril de 2003.

Guy de Maupassant (O Sinal)

A marquesinha de Rennedon dormia ainda, em seu quarto fechado e perfumoso, no grande leito macio e baixo, nos seus lençóis de cambraia leve, finos como uma renda, caridosos como um beijo; dormia sozinha, tranquila, o feliz e profundo sono das divorciadas.

Acordaram-na vozes que falavam com vivacidade, no pequeno salão azul. Ela reconheceu sua cara amiga, a baronesa de Grangerie, discutindo, para entrar, com a camareira, que defendia a porta de sua senhora. Então a marquesinha ergueu-se, puxou os ferrolhos, torceu a chave, soergueu o reposteiro e mostrou sua cabeça, nada mais do que sua cabeça
loira, escondida sob uma nuvem de cabelos.

— Que tem você para vir tão cedo? — disse ela. — Ainda não são nove horas.

A baronesinha, muito pálida, nervosa, febril, respondeu:

— É preciso que eu fale com você. Aconteceu-me uma coisa horrível.

— Entra, minha querida.

Entrou, beijaram-se, e a marquesinha tornou a deitar-se, enquanto a camareira abria as janelas, dando ar e claridade. Depois, logo que a criada se retirou, Mme. de Rennedon tornou: – "Conta, conta".

Mme. de Grangerie pôs-se a chorar, derramando essas lindas lágrimas claras que tornam mais encantadoras as mulheres, e balbuciava, sem enxugar os olhos, para não avermelhá-los:

— Oh! minha querida, é abominável, abominável o que me aconteceu. Eu não dormi toda a noite, nem um minuto Compreende? Nem um minuto. Olha! apalpe meu coração, veja como ele bate.

E, tomando a mão de sua amiga, ela pousou-a sobre o próprio seio, sobre esse redondo e firme invólucro do coração das mulheres, que basta, muitas vezes, aos homens e os impede de procurar qualquer coisa por baixo. O seu coração batia forte, com efeito.

Ela continuou:

— Aconteceu-me ontem de tarde... pelas quatro horas... ou quatro e meia. Não sei ao certo. Conhece bem meu apartamento, sabe que meu salão, onde sempre estou, dá para a rua Saint-Lazare, no primeiro andar, e que eu tenho a mania de pôr-me à janela para olhar o movimento. É tão alegre aquele quarteirão da estação, tão movimentado, tão vivo... Em suma, gosto daquilo! Ontem, pois, estava eu sentada na cadeira baixa que fiz instalar no vão da janela, estava aberta, a janela, e eu não pensava em nada: eu respirava o ar azul. Deve se lembrar que dia lindo fez ontem! 

De repente noto que, do outro lado da rua, há também uma mulher à janela, uma mulher de vermelho; eu estava de malva, você sabe, com meu lindo vestido malva. Eu não conhecia aquela mulher, uma nova locatária, instalada há um mês, e, como faz um mês que chove, ainda não a tinha visto. Mas logo percebi que era uma mulher da vida. A princípio fiquei bastante aborrecida e chocada de que ela estivesse à janela, como eu; e depois, pouco a pouco, achei divertido examiná-la. Estava debruçada e espiava os homens, e os homens também a olhavam, todos ou quase todos. Dir-se-ia que eles eram prevenidos por alguma coisa ao aproximarem-se da casa, que eles a farejavam como os cães farejam a caça, pois erguiam de súbito a cabeça e trocavam depressa um olhar com ela, um olhar maçônico. O dela dizia: "Não quer?" O deles respondia: "Não há tempo", ou: "Para outra vez", ou "Não há dinheiro", ou "Suma, miserável!" Eram os olhos dos pais de família que diziam esta última frase.

Não imaginas como era engraçado vê-la no seu manejo, ou antes, no seu ofício. Às vezes ela fechava subitamente a janela e eu via um senhor entrar na sua porta. Ela o pescava, como um pescador fisga um peixe. Então eu me punha a olhar meu relógio. Demoravam de doze a vinte minutos, nunca mais. Na verdade, ela me apaixonava, afinal, aquela aranha. E depois, não era feia a rapariga! 

Eu perguntava comigo: "Como faz ela para fazer-se compreender tão bem, tão depressa, completamente? Acrescentará ao seu olhar um sinal de cabeça ou um movimento de mão?" E tomei o meu binóculo de teatro para inteirar-me do seu processo. Oh! era bem simples: uma olhadela a princípio, depois um sorriso, depois um pequenino gesto de cabeça, que significava: "Não vai subir?" Mas tão leve, tão vago, tão discreto, que era preciso mesmo muita habilidade para o fazer como ela.

E eu me perguntava: "Será que eu poderia fazê-lo assim tão bem, esse pequeno gesto debaixo para cima, ousado e gentil"; pois era muito gentil o seu gesto. E fui ensaiá-lo diante do espelho. Minha cara, eu o fazia melhor do que ela, muito melhor! Estava encantada; e voltei para a janela.

Ela não pegava mais ninguém agora, a pobre rapariga, mais ninguém. Na verdade, estava sem sorte. Como deve ser terrível ganhar o pão daquela maneira, terrível e divertido às vezes, pois enfim há alguns que não são nada maus, entre esses homens que a gente encontra na rua. Agora eles passavam todos pela minha calçada, e mais nenhum pela sua. O sol tinha virado. Vinham vindo uns após outros, jovens, velhos, morenos, loiros, grisalhos, brancos. Via-os muito gentis, mas muito gentis mesmo, minha cara, muito mais que o meu marido e o teu, o teu antigo marido, pois estás divorciada. Agora você pode escolher.

Eu pensava: "Se lhes fizesse sinal, será que eles me compreenderiam, a mim, que sou uma mulher honesta?" E eis que sou tomada de um desejo louco de lhes fazer aquele sinal, mas de um desejo de mulher grávida... um desejo espantoso, você sabe, um desses desejos... a que a gente não pode resistir! Eu às vezes tenho dessas coisas!

Coisa tola isto, não? Creio que temos alma de macaco, nós, as mulheres. Afirmaram-me de resto (foi um médico que me disse) que o cérebro do macaco se assemelhava muito ao nosso. É preciso sempre que imitemos alguém. Imitamos nossos maridos, quando os amamos, nos primeiros meses de casamento, e nossos amantes depois, nossas amigas, nossos confessores, quando estes o merecem. Adquirimos suas maneiras de pensar, suas maneiras de dizer, suas frases, seus gestos, tudo. É estúpido. Enfim, eu quando sou tentada a fazer alguma coisa, nunca deixo de fazê-la.

Disse, pois, com os meus botões: "Vejamos, vou experimentar com alguém, com um só, para ver. Que é que me pode acontecer? Nada? Trocaremos um sorriso, e eis tudo, nunca mais o verei; e se o tornar a ver, ele não me reconhecerá; e, se me reconhecer, eu negarei, está feito!"

Começo, pois, a escolher. Queria um que fosse bonito. De repente avisto um loiro, grande, um lindo rapaz. Eu gosto dos loiros, bem o sabe. Olho-o. Ele me olha. Sorrio, ele sorri; faço o gesto, oh! quase imperceptível; ele responde "sim" com a cabeça e ei-lo que entra, minha querida! Ele entra pela porta principal da casa. Não imagina o que se passou em mim naquele momento! Supus que ia enlouquecer. Oh! que medo! Imagine, ele ia falar aos criados! A Joseph, que é tão devotado a meu marido! Joseph acreditaria certamente que eu conhecia aquele homem há muito tempo.

Que fazer? Diga. Que fazer? E ele ia tocar a campainha, imediatamente, dali a um segundo. Que fazer, diga? Pensei que o melhor era correr a seu encontro, dizer que se enganava, suplicar-lhe que fosse embora. Ele teria piedade de uma mulher, de uma pobre mulher! Precipitei-me, pois, para a porta, e abro-a exatamente no instante em que ele pousava a mão na campainha. Balbuciei, completamente louca: "Vá embora, senhor, vá embora, o senhor está enganado, eu sou uma mulher honesta, uma mulher casada. É um equívoco, um terrível equívoco; eu o tomei por um de meus amigos, com quem o senhor se parece muito. Tenha piedade de mim, senhor".

E ei-lo que se põe a rir, minha querida, e responde: "Pois sim, minha gatinha! Eu já conheço essa sua manobra: Você é casada, são dois luíses em vez de um. Você os terá. Vamos, mostre-me o caminho".

E ele me empurra; ele fecha a porta. E como eu permanecesse aterrorizada, na sua frente, ele me beija, me enlaça pela cintura e me faz entrar no salão, que ficara aberto. E depois, pôs-se a observar tudo, como um comissário de polícia: "Hum! hum! Está bem instaladinha, hein? Muito chique tudo isso. É preciso que esteja desempregada agora, para ir pescar à janela!"

Então eu recomeço a suplicar-lhe: "Oh senhor! vá embora! vá embora! O meu marido vai chegar! Ele vai chegar daqui a um instante, está na sua hora! Juro-lhe que o senhor está enganado!"

E ele me responde tranquilamente: "Ora, teteia, pare com essas manobras. Se o seu marido chega, eu lhe darei cem sows para ir tomar alguma coisa defronte".

Avistando sobre a lareira a fotografia de Raul, ele me perguntou:

— É este seu... seu marido?

— Sim, é ele.

— Parece uma boa bisca, hein? E esta, quem é? Uma das tuas amigas? Era sua fotografia, minha cara, você sabe, aquela em toalete de baile. Eu não sabia mais o que dizia, e balbuciei:

— Sim, é uma das minhas amigas.

— É muito bonita, sabe? Você me apresentará a ela. "E eis que o relógio se põe a bater cinco horas; e Raul regressa todos os dias às cinco e meia! Oh! imagina se ele voltasse antes de o outro partir! Então... então... eu perdi a cabeça... eu pensei... eu pensei... que o melhor era... era... desembaraçar-me daquele homem... o mais depressa possível... Mais cedo estaria livre... você compreende... e então... já que era preciso.. e era preciso, minha cara... sem isso ele não iria embora... eu então... eu então aferrolhei a porta do salão... Aí está!"

A marquesinha de Rennedon pusera-se a rir, mas a rir loucamente, com a cabeça no travesseiro, sacudindo toda a cama. Quando se acalmou um pouco, perguntou:

— E ele era... um belo rapaz?

— Pois como não?

— E ainda se queixa?

— Mas, minha cara... é que ele disse que voltaria amanhã à mesma hora... e eu tenho um medo atroz... Não faz ideia como ele é tenaz... e voluntarioso... Que fazer... diga... que fazer?

A marquesa sentou no leito para refletir; depois declarou bruscamente:

— Mande prendê-lo.

— Como? Que diz? Em que pensa? Mandar prendê-lo? Com que pretexto?

— Oh! é muito simples. Vá procurar o comissário; e lhe dirá que um homem vem te seguindo há três meses; que ele teve a insolência de subir a sua casa, ontem; que te ameaçou com uma nova visita para amanhã, e que você pede proteção à lei. E te darão dois agentes, que o prenderão.

— Mas, minha querida, e se ele contar...

— Não lhe darão crédito, tolinha, desde que tenha impingido bem sua história ao comissário. E em você acreditarão, pois é uma irrepreensível dama da alta sociedade.

— Oh! eu nunca ousarei!

— É preciso ousar, minha cara, senão está perdida.

— Considera que... que ele vá me insultar... quando o prenderem.

— Pois bem, terá testemunhas e o condenará.

— Condenar a quê?

— A uma indenização. Neste caso, é preciso não ter piedade!

— Ah! a propósito de indenizações... há uma coisa que aborrece muito... mas muito mesmo... Ele me deu... dois luíses... sobre a lareira. 

– Dois luíses? 

– Sim. 

– Nada mais? 

– Não. 

– É pouco. A mim, isso teria me humilhado. 

– E daí? Pois o que é que se deve fazer desse dinheiro que me deixou?

A marquesinha hesitou alguns segundos, depois respondeu com toda a seriedade:

— Minha querida... É preciso... é preciso fazer... um presentinho a seu marido... Nada mais justo

Fonte:
Guy de Maupassant. Bola de sebo e outros contos. 
São Paulo/SP: Editora Globo, 1987