PILOTAGEM
E os meus olhos rasgarão a noite;
E a chuva que vier ferir-me nas vidraças
Compreenderá, então, a sua inutilidade;
E todos os sinos que alimentavam insônias
hão-de repetir as horas mortas
só para os ouvidos da torre;
E os outros ruídos abafar-se-ão no manto negro da noite;
E a mão alva que me apontava os nortes
e ficou debruçada no postigo
amortalhada pela neve
reviverá de novo;
E os meus braços se erguerão transfigurados
para o abraço virgem dos teus braços
que andava perdido, sem dar fé deste seu reino;
E todas as luzes que tresnoitaram os homens
apagar-se-ão;
E o silêncio virá cheio de promessas
que não se cansaram na viagem;
E todos os povos de Babel
com as riquezas que há no mundo
virão festejar a paz em minha honra;
E os caminhos se abrirão
para os homens que seguirem de mãos dadas:
O sangue derramado de Cristo
terá finalmente significação,
e da inútil cruz do martírio
se erguerá o pendão da vitória;
E assim terão começo
os sonhados dias dos meus dias!
TODOS OS CAMINHOS ME SERVEM
Todos os caminhos me servem.
Em todos serei o ébrio
cabeceando nas esquinas.
Uma rua deserta e o hálito
das pessoas que se escondem,
uma rua deserta e um rafeiro
por companheiro.
Ó mar que me sacode os cabelos
que mulher alguma beijou,
lágrimas que os meus olhos vertem
no suor dos lagares,
que uma onda vos misture
e vos leve a morrer
numa praia ignorada.
POR TODOS OS CAMINHOS DO MUNDO
A minha poesia é assim como uma vida que vagueia
pelo mundo,
por todos os caminhos do mundo,
desencontrados como os ponteiros de um relógio velho,
que ora tem um mar de espuma, calmo, como o luar
num jardim noturno,
ora um deserto que o simum veio modificar,
ora a miragem de se estar perto do oásis,
ora os pés cansados, sem forças para além.
Que ninguém me peça esse andar certo de quem sabe
o rumo e a hora de o atingir,
a tranquilidade de quem tem na mão o profetizado
de que a tempestade não lhe abalará o palácio,
a doçura de quem nada tem a regatear,
o clamor dos que nasceram com o sangue a crepitar.
Na minha vida nem sempre a bússola se atrai ao mesmo
norte.
Que ninguém me peça nada. Nada.
Deixai-me com o meu dia que nem sempre é dia,
com a minha noite que nem sempre é noite
como a alma quer.
Não sei caminhos de cor.
TERRA
Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os Rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.
POEMA PARA ILUDIR A VIDA
Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.
FOI HOJE UM DOMINGO BONITO
Foi hoje um domingo bonito, Cacilda!
A sanfona correu o lugar de lés a lés.
– Quem deu pelas histórias dos velhos?
Ninguém.
Quem ouviu a fome do gado, preso no curral?
Ninguém.
Quem espantou as galinhas, debicando nos cachos?
Ninguém.
Na venda, houve surra, abriram cabeças.
E farnéis na charneca e dança
no sobrado da tua avó.
O brasileiro trouxe aquela caixa que tem música
e modas de lá.
Tudo foi bonito, Cacilda!
Vem banhar-te na alegria
das penas adormecidas.
Deixa o amanhã.
UM SEGREDO
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.
Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamos-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
tingida ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.
Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.
Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.
Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.
Fonte:
Fernando Namora. Mar de Sargaços.
Coimbra: Atlântida, 1940.
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