OS CATIVOS
Encostados ás grades da prisão,
Olham o céu os pálidos cativos.
Já com raios oblíquos, fugitivos,
Despede o sol um ultimo clarão.
Entre sombras, no longe, vagamente,
Morrem as vozes na extensão saudosa.
Cai do espaço, pesada, silenciosa,
A tristeza das cousas, lentamente.
E os cativos suspiram. Bandos de aves
Passam velozes, passam apressados,
Como absortos em íntimos cuidados,
Como absortos em pensamentos graves.
E dizem os cativos: Na amplidão
Jamais se extingue a eterna claridade...
A ave tem o voo e a liberdade...
O homem tem os muros da prisão!
Aonde ides? qual é vossa jornada?
Á luz? á aurora? á imensidade? aonde?
- Porém o bando passa e mal responde:
Á noite, á escuridão, ao abismo, ao nada! -
E os cativos suspiram. Surge o vento,
Surge e perpassa esquivo e inquieto,
Como quem traz algum pesar secreto,
Como quem sofre e cala algum tormento.
E dizem os cativos: Que tristezas,
Que segredos antigos, que desditas,
Caminheiro de estradas infinitas,
Te levam a gemer pelas devesas?
Tu que procuras? que visão sagrada
Te acena da soidão onde se esconde?
- Porém o vento passa e só responde:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada! -
E os cativos suspiram novamente.
Como antigos pesares mal extintos,
Como vagos desejos indistintos,
Surgem do escuro os astros, lentamente.
E fitam-se, em silencio indecifrável,
Contemplam-se de longe, misteriosos,
Como quem tem segredos dolorosos,
Como quem ama e vive inconsolável...
E dizem os cativos: Que problemas
Eternos, primitivos vos atraem?
Que luz fitais no centro donde saem
A flux, em jorro, as intuições supremas?
Por que esperais? nessa amplidão sagrada
Que soluções esplendidas se escondem?
- Porém os astros tristes só respondem:
A noite, a escuridão, o abismo, o nada! -
Assim a noite passa. Rumorosos
Sussurram os pinhais meditativos,
Encostados ás grades, os cativos
Olham o céu e choram silenciosos.
OS VENCIDOS
Três cavaleiros seguem lentamente
Por uma estrada erma e pedregosa.
Geme o vento na selva rumorosa,
Cai a noite do céu, pesadamente.
Vacilam-lhes nas mãos as armas rotas,
Têm os corcéis poentos e abatidos,
Em desalinho trazem os vestidos,
Das feridas lhe cai o sangue, em gotas.
A derrota, traiçoeira e pavorosa,
As fontes lhes curvou, com mão potente.
No horizonte escuro do poente
Destaca-se uma mancha sanguinosa.
E o primeiro dos três, erguendo os braços,
Diz num soluço: «Amei e fui amado!
Levou-me uma visão, arrebatado,
Como em carro de luz, pelos espaços!
Com largo voo, penetrei na esfera
Onde vivem as almas que se adoram,
Livre, contente e bom, como os que moram
Entre os astros, na eterna primavera.
Porque irrompe no azul do puro amor
O sopro do desejo pestilente?
Ai do que um dia recebeu de frente
O seu halito rude e queimador!
A flor rubra e olorosa da paixão
Abre languida ao raio matutino,
Mas seu profundo cálix purpurino
Só ressuma* veneno e podridão.
Irmãos, amei - amei e fui amado...
Por isso vago incerto e fugitivo,
E corre lentamente um sangue esquivo
Em gotas, de meu peito alanceado.»
Responde-lhe o segundo cavaleiro,
Com sorriso de trágica amargura:
«Amei os homens e sonhei ventura,
Pela justiça heroica, ao mundo inteiro.
Pelo direito, ergui a voz ardente
No meio das revoltas homicidas:
Caminhando entre raças oprimidas,
Fi-las surgir, como um clarim fremente.
Quando há de vir o dia da justiça?
Quando há de vir o dia do resgate?
Traiu-me o gládio em meio do combate
E semeei na areia movediça!
As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.
O povo dorme em paz no seu monturo,
Como em leito de purpura real.
Irmãos, amei os homens e contente
Por eles combati, com mente justa...
Por isso morro à míngua e a areia adusta
Bebe agora meu sangue, ingloriamente.»
Diz então o terceiro cavaleiro:
«Amei a Deus e em Deus pus alma e tudo.
Fiz do seu nome fortaleza e escudo
No combate do mundo traiçoeiro
Invoquei-a nas horas afrontosas
Em que o mal e o pecado dão assalto.
Procurei-o, com ânsia e sobressalto,
Sondando mil ciências duvidosas.
Que vento de ruína bate os muros
Do templo eterno, o templo sacrossanto?
Rolam, desabam, com fragor e espanto,
Os astros pelo céu, frios e escuros!
Vacila o sol e os santos desesperam...
Tédio ressuma a luz dos dias vãos...
Ai dos que juntam com fervor as mãos!
Ai dos que creem! ai dos que inda esperam!
Irmãos, amei a Deus, com fé profunda...
Por isso vago sem conforto e incerto,
Arrastando entre as urzes do deserto
Um corpo exangue e uma alma moribunda.»
E os três, unindo a voz num ai supremo,
E deixando pender as mãos cansadas
Sobre as armas inúteis e quebradas,
Num gesto inerte de abandono extremo,
Sumiram-se na sombra duvidosa
Da montanha calada e formidável,
Sumiram-se na selva impenetrável
E no palor da noite silenciosa.
ENTRE SOMBRAS
Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
- A noite desce, desfolhando as rosas -
Vem ter comigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas de cetim...
Pousa de leve a delicada mão
- Rescende amena a noite sossegada -
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...
E diz-me essa visão compadecida
- Ha suspiros no espaço vaporoso -
Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?
Vem comigo! Embalado nos meus braços
- Na noite funda ha um silencio santo -
Num sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...
Porque eu habito a região distante
- A noite exala uma doçura infinda -
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...
Habito ali, e tu virás comigo
- Palpita a noite num clarão que ofusca -
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...
Assim me fala essa visão noturna
- No vago espaço ha vozes dolorosas -
São as suas palavras carinhosas
Água correndo em cristalina urna...
Mas eu escuto-a imóvel, sonolento
- A noite verte um desconsolo imenso -
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...
Fito-a, num pasmo doloroso absorto
- A noite é erma como campa enorme -
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!
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Nota:
* Ressuma: goteja, verte, destila
Fonte:
Anthero de Quental. Sonetos Completos.
Porto: Typographia Occidental, 1886.
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