terça-feira, 26 de junho de 2018

Malba Tahan (Duas Tendas do Deserto)

Perdido de meus companheiros — contava-me um árabe em Medina — caminhava um dia, sem rumo, pelo deserto, quando avistei uma grande tenda, junto da qual estava uma jovem muçulmana com o rosto velado por espesso véu.

Mal pousara em mim seus olhos negros e vivos, exclamou:

— A paz seja contigo, ó irmão dos árabes! Que procuras pelos caminhos de Allah?

Contei-lhe, em poucas palavras o que me acontecera e a razão por que me encontrava a vagar desnorteado pelo deserto, concluindo a minha narrativa com os versos famosos de Kháyyám:

— E neste infortúnio, ó formosa filha de Eva! A vagar, sem destino, tenho duas companheiras: a Fome e a Sede!

— Se assim é — volveu, bondosa, a rapariga — serás meu hóspede nesta tenda!

 E pediu-me que descesse do cavalo e descansasse um pouco, enquanto ia preparar-me um saboroso manjar.

 Tão meiga era a voz daquela boa criatura, tão amável a sua maneira de falar, que não hesitei em aceitar o convite e apeei do cavalo junto à tenda. Momentos depois surgiu-me a jovem, trazendo, num prato finíssimo, um pão delicioso, feito de trigo e de mel.

Graças à bondade da minha afável hospedeira, pude saciar a fome que já me atormentava, e beber, com grande satisfação, alguns goles de água pura e fresca.

Não me esqueci de agradecer ao Altíssimo a mercê que me proporcionara, conduzindo-me os passos até àquela sombra acolhedora; e, fora da tenda junto a um velho coqueiro, sob os olhares da jovem que não me desfitava, murmurei:

— Louvado seja Allah que fez nascer a bondade e o carinho no coração das mulheres!

E era minha intenção descansar mais algum tempo naquele aprazível lugar quando surgiu de repente, vindo não sei de onde, um homem de má catadura, com modos abrutalhados de salteador. Era o marido dá jovem e o dono da tenda.

Ao notar a minha presença, interpelou logo a esposa:

— Quem é esse homem? Que faz aqui?

— É um hóspede — replicou a rapariga.

— Não quero saber de hóspede! — replicou, com azedume. — Enxota-o já daqui, antes que eu perca a paciência!

Ao ouvir tal ameaça, montei a cavalo e fugi, a galope, daquele exaltado muçulmano!

Depois de caminhar muitas horas sem parar, cheguei, finalmente, perto de outra tenda que parecia maior e mais rica do que a primeira.

Uma mulher que se detinha junto à porta perguntou-me com visível rispidez?

— Quem és? Que desejas?

Contei-lhe que era um viajante transviado pelo deserto e pedi-lhe que me desse um pouco d’água, algumas tâmaras e uma côdea de pão.

— Em minha tenda não há lugar para hóspedes — atalhou logo. — Detesto chacais que nos importunam implorando água e pão!

— Uma mulher que se detinha junto à porta, perguntou-me, com visível rispidez: — Quem és? Que desejas?

Surpreendido por tão grosseiras e impiedosas palavras (Allah se compadeça daquela mulher), já ia afastar-me, quando surgiu por detrás da tenda um homem, de fisionomia bondosa, ricamente trajado. Era o marido daquela má criatura e o dono da tenda.

O cheique, aproximando-se de mim, estendeu-me amavelmente a mão:

— Bem-vindo sejas, ó desafortunado amigo! Serás meu hóspede e aqui terás pão, água e boa sombra.

E fez-me apear do cavalo, convidando-me a entrar em sua tenda, e foi ele próprio quem me trouxe saborosas frutas e doces secos.

Achei graça à maneira como essa segunda acolhida contrastava com a primeira, inclusive a alternação de sentimentos dos dois casais, e pus-me a rir gostosamente.

— De que te ris? — perguntou ele.

Contei-lhe, sem nada ocultar, o que me havia acontecido na primeira tenda: a mulher me recebera bem, ao passo que o marido só tivera para mim palavras maldosas, cheias de rancor. E que o contrário, exatamente, sucedia então: a mulher me recebera mal e o marido fora para mim de uma bondade cativante e sem limites!

— Não lhe vejo motivo para admiração ou riso — respondeu-lhe o meu bom hospedeiro. — Até é bem natural que assim haja sucedido!

E como eu o fitasse muito admirado, ele acrescentou:

— Aquela mulher que te acolheu, na primeira tenda, é minha irmã, ao passo que o seu marido é irmão de minha mulher!

E concluiu, em voz baixa:

— Quantos lares há, pelo mundo, meu amigo, que são exatamente como as duas tendas que encontraste no deserto!

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida. 

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