sexta-feira, 15 de junho de 2018

Malba Tahan (A Esposa e a Morte)

Na pequena aldeia Bhir, na índia, a encantadora Sanandá era citada como uma das cinco maravilhas da terra. Tinha dezoito anos, pertencia à casta dos brâmanes (1) e conservava-se solteira.

O velho Malua, seu pai, chamou-a um dia e disse-lhe:

— Querida Sanandá! Bem sei que tens no ombro direito o sinal eterno de Siva, mas apesar disso, sinto-me preocupado com o teu futuro. Todas as tuas amigas e companheiras casaram aos oito anos e tu ainda não escolheste marido. É forçoso que te resolvas, o mais cedo possível, a tomar estado.

Respondeu Sanandá:

— Três são, meu pai, os que me pretendem para esposa; Sardu, o belo mercador de Calcutá; Sivala, o rico e generoso senhor de Tandjor, e o inteligente Niassin, que construiu o templo de Bajapor. Asseguro que hesito, apenas por me sentir receosa ante as incertezas do futuro. Com qual dos três serei realmente feliz?

— Minha filha — volveu, tranquilo, o velho brâmane — não há motivos para dúvidas e hesitações. Conheço um sábio faquir que lê o futuro de qualquer pessoa. Tenho motivos para exigir tudo desse iogue (2), pois o livrei de morrer sob as garras de um tigre. Esse bom goru (3) é um santo e faz prodígios. Vou pedir-lhe que leia o teu futuro. Queres conhecer a sentença do iogue?

— Quero ouvi-lo, meu pai!

Duas semanas depois chegou a Bhir o milagroso iogue que sabia ler na areia o kismet(4) de qualquer mortal.

Sanandá trouxe-lhe um espelho redondo sobre cuja superfície polida o santo gora espalhou vagarosamente um punhado de areia branca e fina, que dizia ter sido colhida nas nascentes do Ganges, o rio sagrado. Sobre a leve camada de areia escreveu os nomes dos três jovens que pretendiam a mão da graciosa menina. Agitou depois o espelho, batendo nele onze vezes com as pontas dos dedos e pronunciando certas palavras mágicas.

A curiosidade de Sanandá era, nesse momento, sem limites.

Por fim, o iogue falou:

— Sardu, o mercador, pretende a tua mão de esposa. Se o aceitares para marido serás muito feliz durante três anos e três meses. Findo este prazo, Sardu, arrastado pelo seu espírito inquieto e volúvel, começará a ser infiel ao seu amor conjugal. E viverás, então, menina, muitos anos atormentada por um ciúme negro e torturante.

— Não me convém essa vida! — afirmou logo Sanandá. — Quero ter a meu lado um marido para sempre dedicado e fiel.

— Com Sivala, o rico proprietário — prosseguiu o iogue — o teu destino será completamente diverso. Viverás muito feliz durante dois anos e dois meses. Terminado esse período, o teu marido será tomado de grande paixão pela caça, e passará a viver nos juncais sombrios, preocupado com os laços e as armadilhas. Esquecido, por completo, do amor de sua esposa, o valente caçador só terá atenções para tigres e panteras...

— Detesto os homens indiferentes ao amor — replicou Sanandá. — Sonho com um companheiro que viva só para mim, que seja escravo de meus carinhos. Não quero ser esposa de Sivala!

— Resta-me, ainda — continuou o iogue — descrever a vida que terás como esposa de Niassin, o arquiteto. Casando com esse jovem terás sempre a teu lado um marido carinhoso, fiel e apaixonado. Durante um ano e um mês a tua existência será ditosa e invejável. Passado esse breve lapso de tempo, o teu marido será arrebatado pela Morte, e terás, ao perdê-lo, o coração despedaçado pela dor e pela saudade!

— Quero casar com Niassin! — exclamou, arrebatada, a bela Sanandá.

O judicioso Malua, que tudo ouvira em silêncio, não se conteve:

— A tua decisão é quase uma loucura, minha filha! Medita um instante sobre o destino que te aguarda. Serás, certamente, mais feliz com Sardu, ou com Sivala, do que com aquele que impensadamente escolheste. Esposa de Niassin, que terás afinal? Pouco mais de dez meses de felicidade, e a seguir muitos anos esmagada por uma torturante e interminável viuvez! Procura ser sensata e razoável minha filha!

— Não, meu pai — discordou a jovem. — Já escolhi definitivamente o caminho a seguir. Prefiro a viuvez irremediável à infidelidade ou à indiferença do homem que soube conquistar o meu coração. Sinto-me apaixonada por Niassin e quero casar com ele. Peço, apenas, segredo absoluto para o meu caso e que a sentença proferida pelo iogue não chegue, de modo algum, ao conhecimento do meu noivo.

— Seja pois esse o teu kismet (4), ó encantadora Sanandá!

Dias depois realizou-se o casamento de Sanandá com Niassin. Dizem os poetas que até hoje, na índia, não houve dois esposos tão felizes e apaixonados.

Na noite em que terminava o prazo fixado pelo iogue, a jovem Sanandá deixou-se ficar de vigília na varanda de sua casa. E eis que vê surgir, como uma sombra, a figura inconfundível de Senônia, o Anjo da Morte (5).

    — Que desejas aqui, impiedoso Senônia? — perguntou Sanandá, dirigindo-se impávida ao mensageiro de Iama, o Deus dos Infernos.

O Anjo da Morte, erguendo o véu que lhe cobria o rosto formoso, respondeu, sereno:

— Venho buscar o teu marido, ó bondosa e querida Sanandá! A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

A vida de Niassin, neste mundo, deve terminar hoje! Assim quis o Destino e lama ordenou-me que executasse a sentença.

— Escuta, sedutor Senônia — retorquiu Sanandá. — Quando eu era pequenina, minha mãe deixou-me, certa vez, adormecida sobre um gramado, perto de nossa casa. O Touro Sagrado, ao sair do templo, na direção do pasto, passou sobre o meu corpo e pisou-me o braço. Conservo até hoje, junto ao ombro direito a marca de sua pata divina. Tenho, pois, o direito (por ter sido pisada pelo Touro Sagrado) de fazer um pedido ao enviado de Iama!

— Tens razão. Sanandá — respondeu o Anjo da Morte. — O Touro Sagrado concedeu-te esse grande privilégio. Podes pedir o que quiseres, exceto a vida de teu marido.

— Quero, ó poderoso Senônia! — declarou Sanandá — ter um filho aos trinta anos de idade!

Respondeu o Anjo da Morte:

— O teu pedido, menina, é sagrado, e serás atendida. Terás como desejas, um filho aos trinta e dois anos de idade!

E acrescentou:

— Vou agora buscar Niassin, o teu esposo!

— Espera, Senônia! — interveio com energia Sanandá. — Que vais fazer? Esqueceste de que eu pertenço à casta dos brâmanes. Uma mulher de minha casta (bem o sabes!) quando perde o marido não pode casar com outro homem. Como queres que eu tenha um filho aos trinta e dois anos, se pretendes arrebatar-me Niassin e condenar-me à eterna viuvez!

Senônia, o Anjo da Morte, mensageiro de lama, vencido pelo estratagema de Sanandá, viu-se forçado a partir, deixando em paz os dois esposos felizes.

Na índia, os velhos brâmanes, quando, repetem a singular história de amor de Sanandá, acrescentam, com a sabedoria dos vedas:

— A mulher apaixonada, para salvar o homem que ama é capaz de enganar a própria Morte!
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NOTAS:

1- Brâmane — o povo hindu é dividido em castas que vivem completamente separadas; não se admite, por exemplo, o casamento entre indivíduos de castas diferentes. Este sistema de distinções sociais funda-se, em parte, na diversidade de raças e, de certo modo, na natureza das profissões. As quatro mais importantes são: os Brâmanes (sacerdotes); os Chátrias (militares); os Vaicias (negociantes) e os Sudras (operários e servos domésticos). Além dessas quatro castas há uma infinidade de subcastas. Uma das castas mais ínfimas (mas não a mais Ínfima) é a dos párias.

2- Iogue — Indivíduo já iniciado nas grandes verdades filosóficas. Espírito adiantado.

3- Goru — Iluminado. Indivíduo capaz de atingir a um perfeito desenvolvimento espiritual.

4- Kismet — O destino. Corresponde ao maktub dos árabes. Fatalidade.

5- Senônia — É um dos auxiliares de lama, o décimo primeiro deus da mitologia hindu.

Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

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