quinta-feira, 21 de junho de 2018

Carlos Drummond de Andrade (Nascer)


Era manhã nova, quando ele telefonou, a voz enfestoada:

— Aída Isabel acabou de nascer!

No entressono, que sabia eu de Aída Isabel, como podia avaliar o ato de responsabilidade que ela cometera?

— Quem?

— Aída Isabel. Agora mesmo!

— E é forte, bonita?

— Não sei não senhor. Ainda não pude ver.

Estranhei que a um pai fosse defeso espiar sua filha. Explicou-me que o regulamento era dureza, mas ele daria um jeito. E de fato, mais tarde, comunicou-me que conhecera afinal Aída Isabel.

— Como é que você entrou?

— Por baixo. A dona da portaria estava de costas, lendo jornal, eu me agachei e passei juntinho dela, debaixo do balcão.

Sorria ao contá-lo, pois gosta dessas experiências marotas, e se pudesse ir ver a filha ao jeito comum, perderia o sabor.

— Era para ela chegar na semana passada, internei Lucinha no Hospital dos Servidores, à noite a criança cismou de atrasar, as dores pararam. Então o médico disse que carecia desocupar o leito, o funcionalismo está assim de menino fazendo fila para nascer. Voltamos para Olaria, desapontados. Na noite seguinte, acordamos com um estrondo, lá longe; os vidros da casa retiniram. Eu disse comigo: é agora. A explosão de Deodoro ajudou. Pedi a Lucinha que aguentasse firme até o dia clarear. Voltamos ao hospital, não havia vaga, mas eles foram camaradas, mandaram a gente para uma casa de saúde em Botafogo, negócio alinhado, valeu a pena. Só que não recebe visita. Pessoa da família nem nada.

— Então não posso conhecer Aída Isabel.

— Daqui a uma semana o senhor vai lá em casa e conhece. Damos uma reuniãozinha, bebe-se um chope.

Lembrei-me de que há dez meses, em Olaria, numa reuniãozinha ao ar livre, entre vasos de begônia, com uma cunhada portuguesa muito alegre, mas que não queria cantar fado, uma discussão sobre futebol, Ema d’Ávila e outras matérias, e um cachorro pacato dormindo ao sol, tínhamos bebido uma chopada comemorativa do casamento daqueles dois. Eu fora testemunha dele, no civil. 

Em dez meses, Aída Isabel se fizera e agora vinha ocupar um lugarzinho em Olaria, era um fato novo, no caminhar sorrateiro da vida.

O Brasil tinha 72 850 416 habitantes? Hoje tem 72 850 417. A situação se modificou, o casal tomara providências. Aída Isabel prepara-se para fazer alguma coisa, rara ou comum, ela ainda não sabe. Na dinâmica do país, uma força obscura se delineia, e como fui testemunha do desposório, dou testemunho do seu primeiro resultado, nesta fase inquieta da nacionalidade em busca de novos rumos políticos e sociais. Gostaria que todos tivessem acrescentado alguma pequenina riqueza ao país, neste período. O governo deu duro? Fizeram-se descobertas, escreveram-se livros, criou-se? Ou apenas trabalharam os casais novos?

Aída Isabel, não vou transmitir nenhuma palavra de ordem. Você será moça num Brasil tão diferente deste meu (já assisti a dois ou três brasis, em quarenta anos) que nem sei o que poderia servir-lhe de instrução para trabalhos e sonhos.

Tudo está sempre por acontecer de novo e pela primeira vez. Cresça, Aída Isabel, e floresça. Estamos muito precisados de flores, de moças e de vir a ser.

(conto escrito em 1958)

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. 
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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