Só podiam estar em lua-de-mel. Tantos beijos, afagos, enlevados um do outro. Ela, vista de onde eu me achava, parecia ter seus vinte anos e ser muito bonita. Ou talvez se tratasse de beleza artística, cosmética, aparente. Ele também se vestia da mais fina elegância e dava ares de galã de cinema.
Não, não devia ser verdade. Eu sonhava ou talvez filmavam por ali. De onde haviam surgido? Por que tão bem aparentados naquele ermo? Ora, só havia o rio, a ponte onde eles namoravam e a estrada de que a ponte fazia parte. E mais nada. Só eles e eu. Eles esquecidos do mundo, eu todo ouvidos e olhos. E, apesar disso, eles não notaram minha presença, enquanto eu não perdia um só gesto deles, um só movimento das mãos, dos olhos, dos lábios.
Nunca gostei desse tipo de indiscrição, nem mesmo quando fui criança. Se algum dia me pus a espiar casais, o fiz da maneira mais discreta possível. Aquele, porém, assim tão esquisito, ali naquela ponte, eu não podia deixar de ver, olhar, espreitar. Sobretudo quando se atracavam, se grudavam num interminável abraço/beijo. Nem pareciam dois, antes um só ser – figura arrancada às mitologias, novo hermafrodita.
Imaginei despregá-los. Talvez até me agradecessem o ato humanitário. Dei o primeiro passo e eles, como se percebessem meus movimentos e minhas intenções, se separaram tristemente, feito irmãos siameses contra cuja ligação a medicina se interpusesse. E se olharam com toda a profundeza que existe no olhar de quem se olha ao espelho. Em seguida, com a lentidão dos eternos, ele afagou o cabelo dela, e sorriram, como crianças. E balbuciou não sei que palavras mágicas, cabalísticas.
Eu só via seus lábios a se despregarem e a se juntarem. Ela apenas sorria, um ingênuo e magnífico sorriso.
Súbito ele enfiou as mãos nos bolsos, com sofreguidão, e deles retirou cigarros e fósforos. A luz se fez e a fumaça do fósforo e depois a do cigarro aceso fizeram com que ela levasse as mãos aos olhos e abaixasse a cabeça. Já não adiantava, porém, nenhum gesto, porque a primeira baforada inundava-lhe a cabeleira, provocando-lhe afobação. Inquieto e nervoso, ele abanou o ar com tamanha precipitação que conseguiu esbofeteá-la. Atingida pela pesada mão dele, sentiu-se tonta e cambaleou.
Mais nervoso, ele jogou ao rio o cigarro e amparou-a, enquanto parecia pedir perdões. Ela, no entanto, desprendeu-se dele e, chorando, correu ao longo da ponte, para encostar-se ao extremo da murada, os olhos mergulhados nas águas.
A princípio, ele se pôs a gesticular e falar, sem sair do lugar onde estava desde quando os avistei. A seguir, caminhou no rumo dela. Ao alcançá-la, agarrou-a pelos braços e virou-a para si. Ela ainda chorava e se puseram a falar com muitos gestos, como se se ofendessem. Ele apontava para o rio, e ela, cheia de pavor, arregalou os olhos para o precipício. E exaltou-se, a chorar, a bradar, enquanto ele se calava e debruçava sobre a murada. Depois ele retirou do bolso um lenço vermelho e o entregou a ela.
Nenhum de nós percebeu, por isso, a aproximação de um carro. Eu mesmo só alertei quando ouvi uma buzinada. Voltei-me para o intruso. Ao volante do automóvel uma mulher pedia desculpas (de se ter aproximado, de haver buzinado?) e dava marcha à ré.
Quando me virei de novo para o casal, isto é, para a ponte, já a mulher e o homem haviam desaparecido. Nem sobre a ponte nem ao longo da estrada havia nenhum sinal deles. Corri até a murada e ainda pude avistá-los a nadar contra a correnteza.
Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos).
Brasília/DF: Editora Códice, 1997.
Nenhum comentário:
Postar um comentário