Na gloriosa cidade de Bagdá — a pérola do Islã — vivia a jovem Arusa, uma menina que, na opinião dos poetas de seu tempo, era mais linda e mais encantadora do que a quarta lua do mês de Ramadã.
Raras vezes saiu Arusa do grande serralho do pai, onde vivia como prisioneira, vigiada por eunucos impiedosos, de rostos macilentos e olhos empapuçados. Graças, porém, aos bons ofícios de uma velha intrigante — que a pretexto de negociar em véus se metia em todos os haréns — a formosa menina travou relações com um jovem bagdali chamado Chafik e com ele mantinha constante e secreta correspondência.
O pai de Arusa, na ignorância completa das inclinações amorosas da filha, resolveu dá-la em casamento a um rico cheique chamado Hamed Khamil, homem generoso e nobre, que oferecera pela mão da graciosa menina um dote de vinte camelos e dez mil dinares.
Quando Arusa foi informada de que o pai, movido por odiosa ambição, pretendia casá-la com outro homem — separando-a para sempre do seu apaixonado Chafik — tamanho desespero a invadiu que chegou a desmaiar. Muitos dias passou fechada em seus aposentos, triste e abatida, sem subir ao terraço em que à tarde galeava as suas graças para encanto de todos os olhares. Com o indispensável auxílio da ardilosa anciã, conseguiu a jovem encontrar-se, em rápida entrevista, com o seu namorado, a quem contou a desventura que os ameaçava se, na verdade, o Gênio da Separação estendesse sobre eles a sua asa negra, partindo-lhes o laço de tão pura afeição.
Não vale a pena descrever o eloquente desespero do nosso herói bagdali, ao saber que pretendiam atirar a sua Arusa para os braços de um muçulmano rico, velho amigo do cádi e homem cheio de prestígio na corte do califa Harum al-Raschid.
— Que infeliz que sou! — deplorava o mancebo. — Como poderei arrancar-te impunemente das garras desse homem que tem o ouro e o poder nas mãos?
— Não te preocupes com a minha sorte — disse-lhe, carinhosamente, a linda menina, procurando consolá-lo. — Nem tudo está perdido. Allah é grande! No dia do meu casamento fugirei da casa de meu marido e juntos iremos para onde ninguém nos possa encontrar.
Diante de tal promessa, acalmou-se o arrebatado Chafik, vendo desanuviar-se o seu sonho de amor, e esperou o dia em que Arusa deveria desposar o seu invencível rival.
Alguns meses depois, com inexcedível pompa, realizou-se o brilhante casamento da formosa Arusa com o rico Hamed Khamil. O suntuoso palácio encheu-se de convivas e tão grande foi a concorrência de amigos, parentes e admiradores que a noiva rodeada sempre pelas esposas e companheiras, não encontrou ensejo para a almejada fuga.
Já bem adiantada ia a noite, quando o último convidado deixou o palácio dos recém-casados. Hamed Khamil tomou delicadamente a esposa pela mão e conduziu-a aos seus luxuosos aposentos; aí, pediu-lhe que erguesse o véu e o deixasse ver, pela primeira vez, o rosto em que as graças se esmeraram em profusos dons.
Quando Arusa retirou o véu, Hamed Khamil ficou deslumbrado. Não poderia imaginar que a esposa fosse tão linda, tão sedutora. Louvado seja Allah, o Exaltado, que soube reunir tantas graças em dois fúlgidos olhos, tanta beleza e harmonia na curvatura dos lábios rubros!
Grande, porém, foi a surpresa do rico Khamil, quando notou que Arusa parecia muito triste e dominada por infinito desgosto. E como no peito se lhe acendesse, desde logo, grande paixão pela jovem, ficou apreensivo por vê-la tão acabrunhada e perguntou-lhe:
— Por que estás tão pesarosa? Não foi por tua vontade que casaste comigo? Vamos, conta-me, ó Flor do Islã, o motivo da mágoa que de tão quentes lágrimas enche os teus lindos olhos!
Arusa, sem poder já reprimir os seus sentimentos, contou àquele que acabava de ser seu esposo toda a verdade, sobre o seu antigo namoro, e relatou-lhe, minuciosamente, a combinação estranha que fizera com seu apaixonado, para fugir daquela casa, no próprio dia das núpcias.
— Desgraçadamente, porém — soluçava a jovem — não me foi possível efetuar qualquer plano de fuga e vou, por isso, deixar de cumprir a palavra que dei ao noivo de meu coração.
— Pelo manto do Profeta! — exclamou o marido. — Não seja isto motivo para tão grande mágoa. Não quero servir de empecilho à realização de teus projetos e não posso obrigar-te a quebrar um juramento. Já que prometeste, vais cumprir fielmente a tua louca promessa!
E o rico Khamil, com grande serenidade, tomou novamente pela mão a linda esposa, levou-a através de longos corredores até à porta que dava saída para um lanço deserto da rua e disse-lhe, delicadamente:
— És livre, completamente livre, ó filha de meu tio. Podes partir. Irás para a companhia de teu namorado e com ele poderás ficar o tempo que quiseres. Se algum dia te arrependeres do passo que hoje dás, poderás voltar sem receio para a minha companhia, pois és, pela vontade de Allah, a minha esposa legítima e inspiras-me grande e puro amor!
A jovem noiva mal podia disfarçar o espanto que a dominava. Custava-lhe acreditar na sinceridade do marido. A princípio julgou que o nobre Khamil estivesse a gracejar. Depressa, porém, se convenceu de que o rico cheique nunca falara tão sério e lhe concedia estranha e inteira liberdade, permitindo que ela fosse, naquela mesma noite, para onde muito bem lhe aprouvesse.
Depois de agradecer a generosidade do esposo, a apaixonada Arusa partiu, apressada, pela rua escura e silenciosa, no fim da qual ficava a casa do namorado.
Diz, porém, o velho provérbio árabe, que tem passado de geração em geração, através dos séculos: “A imprudência é irmã do arrependimento”.
Mal a jovem se havia afastado da casa do marido, foi surpreendida por audacioso ladrão, que, oculto num vão de muro, esperava certamente pelo momento propício a algum ataque.
— Pelas barbas de Omar! — murmurou o beduíno. — Parece-me que vejo, ali sozinha, uma mulher ricamente trajada! Se não me iludo, ela traz muitas joias! Positivamente estou hoje muito feliz!
E o salteador, que era um desses terríveis nômades do deserto, surgindo pela frente de Arusa, intimou-a a parar imediatamente, e ameaçando-a com um punhal, ia despojá-la das ricas joias de noivado quando notou que a mulher que assaltava era uma encantadora menina, linda como uma das quarenta mil huris que povoam o Céu de Allah!
— Que ventura a minha — pensou o ousado beduíno. — Encontrar uma formosa donzela coberta de preciosos adornos! Vou raptá-la e levá-la sem perda de tempo para a minha tenda no deserto.
Veio-lhe, entretanto, o desejo de saber por que motivo se encontrava aquela deidade perdida em hora tão tardia, a caminhar sozinha pelas ruas mais perigosas da cidade.
Interrogada pelo facínora, a jovem contou-lhe o que havia ocorrido, o seu plano de fuga, o seu desespero, repetindo-lhe finalmente as palavras de seu generoso marido.
— Por Allah! — exclamou o ladrão — posso garantir que o teu marido é um homem extraordinário! Não é possível admitir-se que haja no mundo outro filho de Adão capaz de proceder do mesmo modo na noite do casamento!
Depois de pequena pausa, o beduíno ajuntou:
— Eu, porém, quero provar, de modo expressivo, que sou um homem mais extraordinário ainda do que o teu espantoso marido. Sabes por que? Poderia, neste momento, entregue e abandonada, como estás, ao meu capricho, poderia, repito, despojar-te de tuas riquíssimas joias e raptar-te, levando-te para a minha tenda. Tal, porém, não será a minha forma de proceder. Ao contrário. Vou conduzir-te, com toda segurança, até a casa de teu namorado. Não quero que continues sozinha o teu percurso, pois algum sacripanta ou aventureiro sem alma poderia fazer-te grande mal!
E, isto dizendo, o ladrão acompanhou a jovem até à casa de Chafik, e só se afastou depois de a ter visto entrar na residência do namorado.
Seria difícil, senão impossível, descrever todas as mostras de alegria, todo o arrebatamento do apaixonado Chafik ao ver chegar a sua amada, em exato cumprimento de tão bela promessa de amor.
— Louvado seja Allah, o Clemente! — exclamou, abraçando a jovem. — Conseguiste, enfim, iludir o teu ciumento marido? Conta-me tudo o que se passou, pois estou ansioso por conhecer as peripécias de tua fuga!
— Muito te enganas, ó Chafik — retorquiu a jovem. — Não iludi meu marido e não seria possível ludibriar um homem tão generoso e inteligente. Se aqui vim ter a esta hora, foi unicamente porque ele próprio assim o quis!
E a encantadora Arusa relatou ao namorado tudo o que se passara, repetindo-lhe fielmente as palavras do marido, e narrando-lhe também, sem nada ocultar, a singular aventura ocorrida com o beduíno ladrão que a surpreendera sozinha em rua deserta e escura.
— Quero crer, minha querida, que o teu marido é um homem extraordinário — confessou Chafik. — Estou certo de que não haverá no mundo de Allah outro marido que proceda como ele procedeu! É evidente, porém, que o ladrão que encontraste casualmente no caminho é ainda mais extraordinário do que o teu marido! Quero, entretanto, provar que sou um homem mil vezes mais extraordinário do que ambos!
E, como a jovem o fitasse surpreendida, sem compreender o sentido de tais palavras, Chafik prosseguiu:
— Bem sabes quanto te amo. Bem conheces a ansiedade com que, há mais de dois anos, eu contava os dias à espera deste dia venturoso! Bem podes avaliar o meu tormento, vendo-te casada com outro! Pois bem: apesar de tudo, vou levar-te, agora mesmo, à casa de teu marido e entregar-te àquele meu odiento rival!
E isto dizendo, tomou-a nos braços fortes e, carregando-a como a uma criança, encaminhou-se pela rua extensa que ia ter ao palácio do rico cheique Hamed Khamil...
Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário