CANÇÃO PARA PODER VIVER
Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?
Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.
Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:
E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa
Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.
E ela me exige bis, "ao palco"!
A FÍSICA DO SUSTO
O espelho caiu da parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede meu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.
A RUA
Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
A OUTRA VIDA
Não espero outra vida, depois desta.
Se esta é má
Por que não bastará aos deuses, já,
A pena que sofri?
Se é boa a vida, deixará de o ser,
Repetida.
ESPAÇO LÍRICO
Não amo o espaço que o meu corpo ocupa
Num jardim público, num estribo de bonde.
Mas o espaço que mora em mim, luz interior.
Um espaço que é meu como uma flor
Que me nasceu por dentro, entre paredes.
Nutrido à custa de secretas sedes.
Que é a forma? Não o simples adorno.
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço
Dentro do meu perfil, do meu contorno.
Que haja em mim um chão vivo em cada passo
(mesmo nas horas mais obscuras) para
Que eu possa amar a todas as criaturas.
Morte: retorno ao incriado. Espaço:
Virgindade do tempo em campo verde.
PAPAGAIO GAIO
Papagaio insensato,
que te fêz assim?
Que não sabes falar
brasileiro
e já sabes latim?
Papagaio insensato,
ave agreste, do mato,
que diabo em ti existe,
verde-gaio,
que nunca estás triste?
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio triste,
papagaio gaio,
quem te fêz tão triste
e tão gaio,
triste mas verde-gaio?
Papagaio gaio,
quem te ensinou,
em mais
do mato, a repetir,
papagaio,
tanto nome feio?
Gaio papagaio,
gaio, gaio, gaio,
que repetes tudo...
Antes fosses
um pássaro mundo.
Papagaio do mato,
se nunca estás triste,
quem foi que te ensinou,
por maldade,
a palavra saudade?
Papagaio gaio.
Gaio, gaio, gaio.
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