segunda-feira, 28 de maio de 2018

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos)


CANÇÃO PARA PODER VIVER

Dou-lhe tudo do que como, 
e ela me exige o último gomo. 
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?

Se ela se fere num espinho, 
O meu sangue é que é o seu vinho.

Se ela tem sede eu é que choro, 
no deserto, para lhe dar água:

E ela mata a sua sede, 
já no copo de minha mágoa

Dou-lhe o meu canto louco; faço 
um pouco mais do que ser louco.

E ela me exige bis, "ao palco"!

A FÍSICA DO SUSTO

O espelho caiu da parede. 
Caiu com ele o meu rosto. 
Com o meu rosto a minha sede. 
Com a minha sede meu desgosto. 
O meu desgosto de olhar, 
no espelho caído, o meu rosto.

A RUA

Bem sei que, muitas vezes, 
O único remédio 
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem, 
A dívida, o divertimento, 
O pedido de emprego, ou a própria alegria. 
A esperança é também uma forma 
De continuo adiamento. 
Sei que é preciso prestigiar a esperança, 
Numa sala de espera. 
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas, 
Esperança sentada. 
Não abdicação diante da vida.

A esperança 
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera. 
Nunca é figura de mulher 
Do quadro antigo. 
Sentada, dando milho aos pombos.

A OUTRA VIDA

Não espero outra vida, depois desta. 
Se esta é má 
Por que não bastará aos deuses, já, 
A pena que sofri? 
Se é boa a vida, deixará de o ser, 
Repetida.

ESPAÇO LÍRICO

Não amo o espaço que o meu corpo ocupa 
Num jardim público, num estribo de bonde. 
Mas o espaço que mora em mim, luz interior. 
Um espaço que é meu como uma flor

Que me nasceu por dentro, entre paredes. 
Nutrido à custa de secretas sedes. 
Que é a forma? Não o simples adorno. 
Não o corpo habitando o espaço, mas o espaço

Dentro do meu perfil, do meu contorno. 
Que haja em mim um chão vivo em cada passo 
(mesmo nas horas mais obscuras) para

Que eu possa amar a todas as criaturas. 
Morte: retorno ao incriado. Espaço: 
Virgindade do tempo em campo verde.

PAPAGAIO GAIO

Papagaio insensato, 
que te fêz assim? 
Que não sabes falar 
brasileiro 
e já sabes latim? 
Papagaio insensato, 
ave agreste, do mato, 
que diabo em ti existe, 
verde-gaio, 
que nunca estás triste?

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio triste, 
papagaio gaio, 
quem te fêz tão triste 
e tão gaio, 
triste mas verde-gaio?

Papagaio gaio, 
quem te ensinou, 
em mais 
do mato, a repetir, 
papagaio, 
tanto nome feio?

Gaio papagaio, 
gaio, gaio, gaio, 
que repetes tudo... 
Antes fosses 
um pássaro mundo.

Papagaio do mato, 
se nunca estás triste, 
quem foi que te ensinou, 
por maldade, 
a palavra saudade?

Papagaio gaio. 
Gaio, gaio, gaio.

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